segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Parte VI: Olhar o azul - O calendário e a geografia da memória



Capítulo 6 Subcomandante Marcos

Participação da conferência do dia 16 de dezembro ao meio dia.


Se para os de cima, nós de baixo somos apenas insetos. Piquemo-lhes”.
Dom Durito da Lacandona


Temos dito, não poucas vezes, que nosso levante zapatista é conta o esquecimento. Permitam-me então falar um pouco de memória.


Faz algumas luas, de passagem por uma das zonas do irregular território zapatista, nos reunimos com um grupo de oficiais insurgentes e Comandantes e Comandantas para ver alguns problemas.


Um destes assuntos era que há muito anos, à pedido de um dos comandos de zona, alguns povoados haviam colaborado com algo para levantar uma cooperativa que, como lhes digo, tempos depois lhes reporiam o que haviam dado.


Certamente, como sempre acontece quando há um erro, nada se acordava com quem havia feito a solicitação, quanto tinha sido o colaborado, de quem, o que passou com a cooperativa, et cetera. Na hora de determinar as responsabilidades chegávamos a um buraco negro.

“O problema” me disse um dos oficiais insurgentes, “é que nós não lembramos como simplesmente foi. Mas os povoados se recordam e estão virados na porra porque não lhes prestamos contas”.


“Esse é o problema. Os povoados não esquecem nada”.


O que eu ia dizer, acabou sendo digo por outro oficial:


“Como isso é o problema? Pelo contrário, isso é nossa força. Si os povoados se esquecessem, não estariam em luta”.


“Isso”, respondeu o primeiro oficial.

Olhei para os Comandantes e Comandantas. Não foi necessário perguntar nada, prontamente me disseram:


“Queremos que o Comando Geral investigue para que se solucione o problema”.


“Tá bom”, lhes disse.


Dei as indicações para que se buscasse Elías Contreras e lhes passaram todos os dados que existiam.


Não passaram muitos dias quando chegou o informe de Elías.


Efetivamente, em uma dessas raras temporadas de baixa pressão militar, o comando de zona, prevendo que isso não duraria muito, propôs que se fizesse uma cooperativa para ter algo quando voltasse a apertar o cerco. O CCRI dessa zona esteve de acordo e fez esta proposta a alguns povoados, e este aceitaram. Chegou, efetivamente, o tempo da pressão militar e tudo o que havia sido acumulado na cooperativa foi enviada ao povoados que estavam recebendo de volta. Até aí tudo limpo e sem problemas. Mas... cito parte do informe de Elías Contreras:


O problema, Sup, é que nem o comando nem os comitês informaram aos povoados. Então já passaram uns anos, nem muitos nem poucos, e os povoados recordaram disso e estão pedindo que o Comando Geral veja o que se passou para que não aconteça mais com os priystas que fazem suas tarugadas e não informam.


Aparte te exponho minha opinião. Bem Sup, claramente te digo como quem diz que cagaram, porque pode ser que as vezes não tenham boa comida, ou não há roupas, ou não há remédios, ou mesmo planos, parece que não passam o dia com todos os problemas que há, mas nunca lhes faltam memória”.


Se repartiram as sanções que cabia a cada um, se fez o informe aos povoados e lhes deram indicações para que se fizesse um censo de quem e quando havia contribuído e se estabeleceu que, usando o fundo de guerra, lhes fossem reintegrado o que haviam dado.


As comissões foram aos povoados em questão. Ao pouco regressaram e informaram. Tudo se ajustou, menos no povoado de San Tito. É que um companheiro, que já é de idade, se negou a receber a reposição do que havia retribuído. Lhe explicaram uma e outra vez que o companheiro se zangou dizendo que não recebia e não. As comissões passaram três dias com suas noites e nada que o convencessem. Como tinham que regressar para os outros trabalhos, lhes deixaram com um responsável do povoado o que correspondia ao companheiro, com a recomendação de que posteriormente o convencesse.


Perguntei o que tinha ocorrido ao oficial que acompanhou a Comissão. Isto foi o que ele me disse:


É o Chompiras. Não sei se você lembra dele, Sup. Foi ele quem ajudou a tirar os feridos do mercado de Ocosingo, daquela vez em 94. E logo quando da traição de 95 lhes mataram dois filhos. Foi um dos primeiros a entrar na luta deste lado. Ele relembra muito o Senhor Ik. Quase não fala. Sempre está calado. Mas, urrr, Sup, quando nós o contamos, mandou parar. Até nos repreendeu. Bem que nos disseram que ele tem mais memória que qualquer um de nós. Se mete que nem os mais novos, nos disse (o oficial tem quase 30 anos). Que se por acaso não sabemos, o Senhor Ik explicou que a luta não acaba até que se acabe e então tudo fique correto. Que ele não vai receber nada porque o deu para a luta e a luta não terminou”.


E o que fizeram vocês?”, lhe perguntei enquanto acendia a pipa.


Nada, que iríamos fazer? Saímos correndo porque nos botou para correr com o facão. E disse que fossemos nos acusar com você porque não temos memória. Assim disse”.







Em uma das intervenções neste colóquio, na de Don Jorge Alonso, nos foi dito que não há um só enfoque para analisar a realidade, e sim que existem distintas formas de aproximar-se dela. Nós queremos aproveitar a dupla proximidade de Jean Robert e de John Berger, que algo sabem disso, para tomar essa acertada afirmação e falar da observação.


Ou melhor, de dois grandes olhares e dos privilégios de um sobre o outro.


Me refiro ao olhar aos zapatistas e ao olhar dos zapatistas.

Pode-se atribuir à sua formação, à sua história, à sua lucidez ou a essa estranha sensibilidade que logo aparece de tanto em tanto em algumas pessoas, mas há uma enorme diferença na maneira que vêem à nós zapatistas aquelas pessoas que trabalham diretamente com comunidades indígenas e àquelas outras que nos vêem de longe, quer dizer, de outra realidade.


Não me refiro à sua forma indulgente ou não, questionadora ou não, definidora ou não, de nos olhar. E sim a parte nossa que elegem para olhar e a atitude com que a olham.


Andrés Aubry, cuja história nos convoca aqui, tinha sua forma de nos olhar, quer dizer, elegia uma parte do que somos para vernos. As duas últimas vezes que o vi eu descrevo aqui:


Em uma, foi em uma reunião privada junto com Jérome Baschet, falamos de livros e outros absurdos.


Aubry estava desenvolto, eloqüente, como se estivesse com amigos.


Na outra, foi naquela mesa redonda onde lançou uma das críticas mais severas e certeiras que eu já havia escutado contra a academia, André voltava uma e outra vez até atrás, fazia suas costas, onde centenas de companheiras e companheiros, autoridades autônomas, responsáveis por comissões e comandos organizados dos 5 caracóis escutavam em silêncio.


Andrés estava nervoso, inquieto, como se estivesse diante de severos juízes ou bispos.


Do outro extremo da mesa, o olhei e o entendi.


Há quem se preocupe com as valorações que na academia faz de suas explanações. Aubry fazia tais explanações sem esta preocupação. Era a valoração das zapatistas, dos zapatistas, que o preocupava.


Era o mesmo Andrés Aubry que, naquela Marcha da Cor da Terra do calendário de 2001, não reparava nos galpões que foram sucedendo na geografia que recorremos. Tampouco às multidões que acudiam aos atos. Olhava, em troca, aos pequenos grupos que, disperso ao longo de caminhos e estradas, se somavam para nos ver passar ou para mandar uma saudação.


Porém quando se estava no estica e puxa de conceder ou não a palavra no Congresso da União à uma mulher indígena sem rosto, Aubry acertou na mosca de um calendário posterior quando disse, mais ou menos, “a marcha, não esta, a marcha lá, nas serranias, nos pequenos povoados, de onde não se fala, irá fazer acontecer”.


Andrés Aubry não nos olhava como outras pessoas que trabalham em comunidades ou com indígenas, quer dizer, como a imagem dos perpétuos evangelizados, como eternos meninos e meninas sem se importar com os calendários que passem, como as filhas e filhos que envergonham ou orgulham ao pais, ou como espelhos que, de uma mesma, de um mesmo, se penduram para tapar a própria vida dos outros, das outras, com quem nos contactamos, espelhos que se mostram ou não, dependendo do auditório ou da conjuntura, com uma nova espécie de oportunismo. Aqueles, aquelas que escutam alguma intervenção certeira ou um análise lúcida de uma companheira e de um companheiro, e, com cotoveladas cúmplices ao vizinho ou abertamente, dizem: “À essa, à esse nós nos unimos (assim, em masculino), não aos zapatistas”.


Não, Aubry nos olhava como se os povos indígenas fossem um severo professor ou tutor. Como se fosse consciente de que a história pudesse virar de cabeça pra baixo a qualquer momento, ou como se nas comunidades zapatistas já houvesse ocorrido isto, onde foram os indígenas los evangelizadores, os professores, e frente a isto não valeram os doutorados no estrangeiro, a alta pilha de livros escritos, o ar descuidosamente europeu ou propositalmente missionário de vestimenta e atitude.


Ontem foi dito algo aqui que deve ter provocado muito Andrés Aubry para que ele tenha se remexido na terra que lhe hospeda. Foi dito que nossos povos são ignorantes. Não sei como ficam aqueles que se reconhecem como alunos desses povos “ignorantes”. Depois voltarei a esta questão.


Creio que, ao se perguntar, Andrés Aubry via a parte dos povos zapatistas que está em voga por dentro. Como se este povo tivesse decidido não só voltar ao mundo, mas sim também voltar à sua percepção e tivesse feito com que sua essência, o que o define, fosse olhada por dentro, não por fora. Como se as máscaras fossem uma armadura de múltiplos usos: fortaleza, trincheira, espelho externo e, ao mesmo tempo, cobertura de algo em gestação.


Em outros e outras também reconhecemos esta forma de nos olhar: Ronco, Don Pablo, Jorge, Estela, Felipe, Raymundo, Carlos, Eduardo, outro, outra, nada, para mencionar só alguns. Desculpem se só aparece um nome feminino, mas parece que nesta forma de olhar não há quota de gênero.


Nem todos os olhares que nos olham são tão levados a reconhecer e a agradecer como a de Aubry.


Também existem olhares que nos olham como se fossemos, para quem disse em pleno neoliberalismo, uma possibilidade de luco a curto, médio ou longo prazo. São os olhares do agiota político, ideológico, científico, moral, jornalístico. Dessas formas de nos olhar falarei depois.


Todos estes olhares, tão distintos uns dos outros, tão diferentes na forma de eleger a parte nossa que observam, têm, contudo, algo em comum: são olhares de fora.


Além disso, é preciso dizer, esses olhares têm o privilégio de ser os difundidos e se conhecem em outras geografias e outros calendários.


Nosso olhar, nosso olhar para eles e para elas, tem o inconveniente (e ao mesmo tempo a vantagem, mas disso falarei depois) de só ser conhecido por outro de fora se vocês decidem ou permitem.


Se nosso olhar é de agradecimento, de reconhecimento, de admiração, de respeito, ou coincide com os que nos olham, então aí sim, que seja difundido, que se faça conhecer, que se destaque a sabedoria, lucidez, pertinência.


Mas se pelo contrário, se é de crítica e questionamento, não importam as argumentações e razões que se dê, então aí é preciso calar este olhar, tapá-lo, ocultá-lo.


Então aí se assinala nossa falta de referência, nossa intolerância, nosso radicalismo, nossos erros.


Bom, não “nossos”, e sim “os erros de Marcos”, “o mal da máscara de Marcos”, “a intolerância de Marcos”, “o radicalismo de Marcos”.


Em uma das apresentações do livro “Noites de Fogo e Desvelo” uma jornalista me explicava o feroz repúdio e a reiterada calúnia contra nossa palavra em lugares antes abertos e tolerantes, dizendo “é que não entendem isso de ser conseqüente”.


Em fim, o que quero assinalar é que nos últimos três anos, é o olhar de vocês sobre nós que é mais conhecido.


Foram feitas fotos, documentários, gravações, reportagens, entrevistas, crônicas, artigos, ensaios, teses, livros, conferências, mesas redondas com seus olhares olhando-nos.


Não vou me deter em assinalar detalhes como o fato de algumas pessoas terem escritos livros inteiros sobre o zapatismo sem ter ido para além de San Cristobal de Las Casas e algumas se apresentam como se estivessem vivendo em comunidades quando na realidade viviam nesta fria e soberba Jovel, ou o caso extremo de Carlos Tello Díaz, que escreveu uma suposta história do EZLN com material proporcionado pelo serviço de inteligência do governo e que, me permitam dizer, não são nada inteligentes.


Quero, ao contrário, assinalar que seu olhar não só é de fora e não só elege uma forma de nos olhar (um enfoque, disse Don Jorge), mas também elege olhar só uma parte do que somos.


Ontem assinalei que nós reconhecemos que não somos capazes (nem o queremos ser) de abranger todo o espectro do movimento anti-sistêmico no México.


Me parece que seu olhar olhando-nos deveria reconhecer que não é capaz de abranger tudo o que foi, é, significa e representa nosso movimento.


Não lhes pedimos humildade (ainda que creio que para alguns não cairia mal receber um curso sobre o tema), e sim honestidade.


O olhar de vocês, cientistas sociais, intelectuais, teóricos, analistas, artistas, é uma janela para que outas, outros, nos olhem.


No geral não se tem sido consciente de que essa janela está mostrando apenas uma pequena parte da grande casa do zapatismo, assim que não cairia mal advertir aqueles que nos olham através de seus olhares.


Há um ano, uma companheira citadina fazia seu próprio reconto da história do zapatismo desde o primeiro de janeiro de 1994 e dizia: “se tem estado em tudo!”.


Não era correto. Por sua conta esqueceu de compreender que só apareciam os fatos e atividades externas públicas do zapatismo.


Não estavam coisas e fatos que não têm palavras para ser descritas: a resistência cotidiana e heróica nas comunidades, a teimosia paciente das tropas insurgentes, o silencioso ir e vir por nossos território das autoridades organizativas. O zapatismo, então, sustenta e dá sentido ao que se olha, escuta, toca, degusta, fala, pensa e sente.


Sei que minha posição como Sup me dá um lugar privilegiado para olhar olhando-nos. Mas lhes sou sincero: não consigo abranger todos os detalhes e, como nos confessou Ronco esta manhã, não deixo de me assombrar e de me maravilhar, uma e outra vez, com o pouco que consegue abranger um coração maltratado, cheio de remendos e de cicatrizes que, afortunadamente, não cessam.


Então vos digo com esse coração na mão: no zapatismo, o olhar não é um privilégio individual e sim coletivo.


E acrescento que em nosso olhar olhando-os, temos sempre nos esforçado em tentar entendê-los, não de jugá-los.


Por quê?” é a pergunta que anda em nosso olhar quando olhamos vocês.

Por quê dizem isso, por quê pensam assim, por quê fazem assim?”.


A verdade é que quase sempre nossas perguntas acabam sem respostas, mas vá e passe, em altos e baixos. Depois de tudo há a segurança de que conosco sempre acabam existindo mais perguntas e dúvidas do que certezas e respostas.


É o que vos digo, mas não para pedir reciprocidade. Creiam-me, na maioria dos casos, além de respeito, lhes devemos gratidão.


É só para que olhem tudo o que inclui e exclui em um olhar.








Se erro aí me corrigem, mas creio que foi Paul Eluard quem disse que “Le monde est blue commme une orange”, que meu francês de san papier traduz como “o mundo é azul como um laranja”.


Tem se visto também algumas dessas fotos tiradas do mundo a partir do espaço. A terra se olha, efetivamente, azul, mas bem poderia ser uma laranja.


As vezes, nas madrugadas que me encontram perambulando sem repouso possível, me pego trepado em uma espiral de fumaça e, lá de muito alto, nos olho.


Creiam-me que o que se consegue ver é tão belo que dói olhar.


Não digo que seja perfeito, nem acabado, nem que careça de vãos, irregularidades, feridas por fechar, injustiças por remediar, espaços por liberar.


Mas é algo que se move.


Como se todo o mal que somos e carregamos se mesclasse com o bom que podemos ser e o mundo inteiro redesenhasse sua geografia, e seu tempo se enchesse com outo calendário.


Vá, como se outro mundo fosse possível.


Venho depois aqui e escuto, então, que alguém disse que nossos povos são ignorantes.


Eu encho de tabaco a pipa, a acendo e então digo:


Caralho! Que honra poder ser aluno de tanta e tão rica ignorância!


Gracias de nuez.



Subcomandate Insurgente Marcos.
San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.
Dezembro de 2007.


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena. (Nota do tradutor)


Leia os outros Calendários e Geografias de"Nem o centro e nem a periferia" no Primeiro Colóquio Internacional in memorian Andrés Aubry
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