Publicado originalmente no Sítio Passa Palavra!
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Teses em torno da autonomia dos povos índios
Nesta abordagem sócio-antropológica de López y Rivas, “os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso o capitalismo”.
- Por Gilberto López y Rivas [*]
Teses em torno da autonomia dos povos índios
Nesta abordagem sócio-antropológica de López y Rivas, “os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso o capitalismo”. Por Gilberto López y Rivas [*]
Introdução [1]
As seguintes linhas têm o propósito de refletir e reavaliar a vigência das lutas pela autonomia indígena, assim como os sujeitos políticos que a encarnam no contexto da crise geral e civilizatória do capitalismo e, em particular, a recomposição estatal causada pela transnacionalização neoliberal em vários países latino-americanos.
Particularmente irei deter-me no caso mexicano, dado que segui de muito perto e até estive próximo de movimentos sociais e políticos que reivindicam os direitos indígenas.
1. Definição da historicidade do conceito
A partir das investigações realizadas na América Latina [2] concebemos a autonomia basicamente como um processo de resistência mediante o qual as etnias ou povos soterrados, negados ou esquecidos fortalecem ou recuperam a sua identidade através da reivindicação da sua cultura, dos seus direitos e das suas estruturas político-administrativas. De uma forma geral a autonomia, isto é, a regência pelas próprias leis, define-se como a capacidade de indivíduos, governos, nacionalidades, povos e outras entidades e sujeitos para assumirem os seus interesses e ações mediante normativas e poderes próprios, consequentemente opostos a toda a dependência ou subordinação heterônoma. Como qualquer conceito, a autonomia indígena contemporânea deve ser compreendida no seu contexto histórico: a luta dos povos originários por conservarem e fortalecerem a sua integridade territorial e cultural através de autogovernos que praticam a democracia participativa e enfrentam – com uma estratégia anti-sistêmica – a espoliação e a violência do sistema capitalista na sua atual fase de transnacionalização neoliberal. Mesmo se, perante este fenômeno coercivo chamado globalização, a figura política do Estado-nação se torna obsoleta e incômoda, é difícil negar que, para além do mercado e do consumo, existam povos que reclamam uma origem e uma identidade. São sujeitos que desejam imprimir um sentido comunitário às suas vidas num tempo em que o egoísmo, o individualismo e a concorrência pretendem sobrepor-se à solidariedade, dignidade e fraternidade. As autonomias na América Latina projetam-se hoje em dia como aqueles espaços político-territoriais onde os povos oprimidos podem consolidar, no âmbito local, regional e até nacional, as suas expressões comunitárias de democracia direta.
2. Democratização e transformação da vida indígena
Destacamos o caráter dinâmico e transformador das autonomias que, para o serem, modificam os [seus] próprios atores e em dimensões diversas: as relações entre gêneros, entre gerações, promovendo neste caso o protagonismo das mulheres e dos jovens; democratizando as sociedades indígenas, politizando ou inovando as suas estruturas políticas e socioculturais. Faz-se notar a importância da participação das mulheres nos diversos níveis e espaços da vida comunitária e municipal, em particular nas instâncias de decisão e exercício do autogoverno indígena, pela qual se consegue uma sociedade mais justa e equitativa, desenvolvendo ações concretas para combater todo o tipo de violência contra as mulheres indígenas. O estudo das autonomias indígenas contemporâneas na América Latina, particularmente no México, numa perspectiva integral e comparativa, mostra a natureza transformadora destes processos não só na sua articulação, as mais das vezes contraditória com os Estados nacionais existentes, mas também no interior dos sujeitos autonômicos. Assim, não se trata apenas da existência de autogovernos tradicionais indígenas que se desenvolvem de diversas formas ao longo da colonização e da vida independente, e que perduram até os nossos dias em numerosas comunidades da geografia latino-americana. Também não se trata de competências e atribuições estabelecidas de cima para baixo, administrativamente ou por modificações constitucionais, reivindicações mínimas e máximas de modelos que não correspondem a realidades concretas e que denotam os limites de uma ciência social a reboque dos processos sócio-étnicos. As práticas autonômicas atuais vão mais longe. Quando os zapatistas – por exemplo – transcendem o autogoverno e o assumem a partir dos princípios de mandar obedecendo, da rotação dos cargos de autoridade, da revogação do mandato, da participação planejada e programada de mulheres e jovens, da reorganização equitativa e sustentável da economia, da adoção de uma identidade política anticapitalista e anti-sistêmica e da busca de alianças nacionais e internacionais que lhe sejam afins, está-se a levar a cabo uma mudança qualitativa das autonomias: e paralelamente transformam-se os próprios povos indígenas nas suas relações de gênero e grupos etários, nos seus processos de identidade política, étnica e nacional, na sua apropriação regional do território e na extensão do poder de baixo para cima.
3. Controle do território e dos seus recursos
Perante a agressão permanente das grandes empresas em busca de territórios, recursos e saberes dos povos, a autonomia procura redefinir a relação com o meio que a rodeia. Na profundidade de território busca-se a união complementar de produtores e comercializadores para desenvolver uma economia solidária e a autosuficiência alimentar, assim como a geração de projetos econômicos para benefício geral, otimizando todos os esforços para o exercício real da autonomia como tarefa de todos e de todas. A defesa dos sujeitos econômicos contra a ação do mercado e seus agentes estatais significa o controle do território a partir de baixo (comunidades) e a partir da sociedade civil nacional e internacional que por vezes acompanha estes movimentos. Reafirma-se a urgência de recuperar ou desenvolver a autonomia econômica, produtiva e alimentar dos povos com o fortalecimento do cultivo do milho autóctone (não o transgênico), o uso de adubos orgânicos (e a recusa dos agroquímicos), os cuidados com a água, o uso e a proteção de sementes próprias; assim como a recriação e fortalecimento dos sistemas de ajuda mútua, dos mercados e tianguis [mercados indígenas ao ar livre de origem pré-hispânica] locais e regionais e o aproveitamento das ecotécnicas. Perante a grave crise alimentar que ameaça a humanidade e as mudanças climáticas, a autonomia procura fortalecer a produção de alimentos e a introdução de programas e planos educativos nos seus diversos âmbitos e níveis que estimulem o respeito pela agricultura própria e, em especial, o milho. Os povos e comunidades indígenas são proprietários e herdeiros de terras, territórios e recursos naturais onde vivem e, por conseguinte, exigem respeito e reconhecimento desse direito por parte do Estado e das empresas nacionais e estrangeiras que se empenham nos seus afãs de privatização e de comercialização. Por isso estão a exigir o fim de todo e qualquer projeto, ação ou concessão que atentem contra a propriedade, o uso, a exploração, o aproveitamento e a integridade de territórios, terras, lugares sagrados e recursos naturais dos povos índios, assim como de leis, decretos e regulamentos que tendam a despojar e facilitar o aproveitamento por terceiros, alheios às comunidades indígenas dos seus recursos naturais. [3]
4. Diálogo intercultural
Os processos educativos e de socialização, do mesmo modo, são gerados a partir das, e pelas, comunidades, levando em conta os saberes surgidos dos povos e de outros atores populares, e aqueles que possam enriquecer os sujeitos autonômicos, no pressuposto de que o diálogo intercultural fortalece a autonomia. Esta situação é mais notória e necessária quando dois ou mais povos confluem em um mesmo processo autonômico (Chiapas, regiões da Guatemala e da Nicarágua, por exemplo) e a unidade do sujeito autonômico frente ao Estado transnacionalizado se torna indispensável, já que nas atuais circunstâncias este sujeito se opõe diretamente aos agentes estatais (funcionários, polícias, exército, juízes, etc.) ao serviço do capital. Nestes casos deve mesmo dar-se uma representatividade pluriétnica aos órgãos de autoridade e recordando sempre – como faz o subcomandante insurgente Marcos – que a autonomia é tão importante que não podemos deixá-la nas mãos dos políticos profissionais. [4]
5. Política de alianças
Se a autonomia é parte da questão nacional, o movimento indígena que pratica e promove as autonomias, na sua luta por prevalecer, estabelece as alianças necessárias, primeiro entre os próprios povos indígenas e, a partir daí, com os setores oprimidos e explorados do país em questão. Isto significa a permanente construção do sujeito autonômico, não só a partir de baixo mas também nas suas alianças com outros atores políticos e a partir do controle sistemático dos representantes através da prestação de contas, da revogação do mandato, conforme os casos, e da rotação dos cargos. Nunca foi posta em dúvida a matriz classista imposta pelo capital nem o tipo de Estado em que se encontram imersas as lutas pelas autonomias e, consequentemente, a necessidade de alianças dos movimentos indígenas com todos quantos apresentam reformas democráticas, contra o capitalismo e até pela construção de um novo tipo de socialismo. Não foi da responsabilidade dos povos indígenas o pouco interesse mostrado por partidos e organizações da esquerda no estabelecimento de acordos para uma luta unificada nos terrenos político, eleitoral ou de mobilização social. Há exemplos, alguns trágicos, do uso instrumental dos indígenas nos processos políticos institucionais e também nos espaços da guerra revolucionária. Do mesmo modo, os movimentos autonomistas indígenas não praticam um culto da resistência popular espontânea. Usualmente os seus movimentos são precedidos de longas deliberações e, como demonstra a insurreição zapatista de 1994, tiveram de passar muitos anos até o início da rebelião e até agora não foram dados passos que resultassem da espontaneidade ou do aventureirismo políticos. Este movimento demonstra o valor que é atribuído à consciência e à organização dos oprimidos e explorados na luta contra um Estado que os procura desgastar e mesmo destruir, política e militarmente.
6. Desenvolvimento desigual das autonomias
É evidente que todos estes processos não são levados a cabo simultaneamente nas etno-regiões e em todos os casos em que é exercido o autogoverno indígena, destacando-se a profundidade de alguns deles que, por razões específicas, puderam desenvolver formas organizativas – inclusive político-militares – como o EZLN, que dão coerência e integralidade às práticas autonômicas. Existem situações, por exemplo, em que a dependência econômica ou política do povo indígena em relação aos mecanismos do mercado e aos aparelhos estatais atrofia o processo autonômico, caso dos yaquis, onde se revela distorcido até para os seus próprios atores que referem que a sua autonomia “é relativa”. Noutras situações, o caciquismo ou o paramilitarismo ameaçam diretamente a autonomia com a repressão generalizada e a criminalização dos que se destacam no processo, caso de Xochistlahuaca, Guerrero, ou entre os triqui de Oaxaca. Por isso se insiste no caráter intrínseco de mudança, adaptação, reação e inovação das autonomias em função dos fatores internacionais, nacionais, regionais e locais que os povos indígenas enfrentam. Onde o significado múltiplo e polivalente do termo e, por vezes até, a recusa de utilizá-lo em algumas experiências que, como a polícia comunitária de Guerrero, é uma tentativa de governar-se e fazer justiça pelas suas próprias normas, o que é, na essência, o denominador comum de todo o processo autonômico.
7. Indigenismo antitético de autonomia
A formação e o fortalecimento do sujeito autonômico passam também pela ruptura com as velhas formas das políticas indigenistas durante muitos anos praticadas pelo Estado para manter o controle dos povos e das comunidades indígenas, mediante o paternalismo e o clientelismo. O movimento indígena independente do Estado revela que indigenismo e autonomia são conceitos antitéticos. [5]
8. Autonomia e sistema de partidos de Estado
Também comprovamos que a ingerência de partidos políticos na maioria dos casos deteriora, e até leva ao fracasso, o exercício autonômico. No caso mexicano, o reservatório de votos que o partido oficial (nos tempos do sistema do partido de Estado no México) impunha através do sistema de cacicagem indígena vê-se seriamente afetado por um movimento indígena que, inclusive, rejeita frontalmente o atual sistema de partidos de Estado e nutre as maiores dúvidas sobre as deterioradas componentes da democracia tutelada, e se impõe, no seu lugar, outra forma coletiva de fazer política. A partir do etnocentrismo da sociedade nacional só a democracia representativa é possível e é negada toda a experiência relacionada com as democracias diretas das comunidades indígenas, as quais desenvolvem uma cultura política de resistência, que é a própria base dos atuais processos autonômicos.
9. Sujeito autonômico, rede multiétnica contra conflitos comunitários
A experiência zapatista e as de outros processos na América Latina mostram que o desenvolvimento de uma rede multiétnica consolidada de comunidades e regiões, e até de diferentes povos, é outra das mudanças transcendentes nas atuais autonomias, nas quais as cisões intracomunitárias por conflitos seculares, por limites territoriais ou por recursos podem ser superadas para responderem unidos à intrusão violenta dos Estados e às grandes empresas capitalistas. Todas as transformações internas, rupturas e redefinições nos âmbitos comunitários, regionais e nacional, são impossíveis sem essa conformação e fortalecimento de um sujeito autonômico com capacidade de afirmação hegemônica para dentro, de tal modo a contribuir para a coesão interna através da construção de consensos, da democracia participativa, da tolerância e da superação das divisões religiosas, étnicas ou políticas, da luta contra a corrupção e contra as tentativas de cooptação por parte do Estado e dos seus agentes. Este sujeito incita a mobilização dos povos e comunidades em defesa dos seus direitos e reivindicações e tem o apoio para uma representação legítima para fora.
10. Autonomias pluriétnicas e plurinacionais e sua contribuição para a nação democrática
As autonomias indígenas contemporâneas estão longe dos estereótipos de autarquia que os seus adversários predisseram como sendo inerente a esses fenômenos. Pelo contrário, como se observa em muitos países da América Latina, a irrupção dos povos indígenas nos acontecimentos políticos dos seus respectivos países é uma realidade inegável. Esses processos autonômicos propõem-se mudanças substanciais na própria natureza desses países como entidades plurinacionais, pluriétnicas, pluriculturais e plurilinguísticas, e reafirma os indígenas como sujeitos políticos de direitos coletivos irrenunciáveis no seu caráter de povos e nacionalidades. Neste sentido, uma das conclusões fundamentais da investigação Latautonomy foi a seguinte:
“Recusando de igual modo a aculturação modernizante e o recuo tradicionalista, denunciando a sua exclusão e a sua dominação históricas, os povos e movimentos indígenas afirmam-se historicamente pela primeira vez com as suas especificidades nos espaços públicos para reclamarem o reconhecimento das suas contribuições potenciais para a construção da sociedade futura e da sua contribuição para “um outro mundo possível”. As reivindicações dos povos indígenas, os valores que defendem – o bem comum e a solidariedade, o respeito pela natureza e a noção de equilíbrio, a recusa das lógicas de consumismo e a preeminência dos valores imateriais, a busca da harmonia e do consenso – vão mais longe do que os interesses estreitamente comunitários. Constituem a afirmação de valores que permitem uma adesão universal e transcendem os limites da etnicidade”. (Monique Munting, “Radiografía de la autonomías multiculturales en América Latina”, en Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas. El Universo Autonómico: propuesta para una nueva democracia. Ob. cit.).
11. Rumo à integralidade da autonomia e da sua dimensão regional
A partir da perspectiva mais ampla de autonomia, como é expressa no terreno político, jurídico, dos direitos econômicos, sociais e culturais e que o fundamento da implementação a nível comunitário, municipal e regional, reafirma-se o valor e a importância das práticas políticas que se materializam em assembléias comunitárias, os “sistemas de cargo”, o tequio [trabalho coletivo em prol da comunidade] e, em geral, as obrigações e contribuições comunitárias. Isso destaca a importância da coordenação e interação entre comunidades e municípios indígenas para o exercício da autonomia a nível regional, como garantido na aprovação pelas Nações Unidas da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas e também, em Acordos de San Andrés de 1996. [6]
12. A autonomia se opõe à cultura política hegemônica
A autonomia é construída a partir de uma lógica diferente da cultura política hegemônica, a qual se opõe por definição. Não tem nada a ver com a limpeza étnica, o etnicismo e autarquia, e trata de olhar em forma autocrítica seu próprio ambiente para erradicar a reprodução de práticas clientelistas e políticas corporativas. Pretende reconstruir e dar um novo significado profundo à cultura democrática, quer dizer: a tolerância, o diálogo, a escolha racional. Estas vêm se constituindo como os instrumentos mais valiosos para a resolução dos conflitos decorrentes das suas diferentes origens étnicas, suas identidades diversas e os diferentes padrões morais e culturais.
13. A autonomia para a construção de uma civilização contra sistêmica
É importante discutir e consolidar essas experiências latino-americanas de autonomia, com as existentes em outros países e continentes, em outras culturas, pois a luta pelas autonomias tem como horizonte uma civilização diferente da que prevalece hoje, mesmo nos cantos mais remotos do planeta. Refiro-me à civilização hegemônica do capital, na qual a produção e reprodução da vida humana está subordinada à produção e reprodução de mercadorias, e ao tempo que existem recursos naturais, conhecimentos científicos, e as tecnologias para garantir o alimento para toda a humanidade, mas em que prevalece uma racionalidade instrumental, onde a fome, a exploração e os desastres ecológicos são justificados em nome do enriquecimento constante de uma quinta parte da população que detém o 86% da riqueza global.
14. Autonomia, transformando a resistência e os projetos imperiais
Pensar na autonomia e sua relação com os Estados-nação latino-americanos implica uma responsabilidade teórica e política com uma resistência revolucionária e transformadora contra o projeto hemisférico dos Estados Unidos e seus aliados que tentam continuar impondo sobre o continente o que já desponta como uma nova expressão da mundialização do capital. América Latina está sendo afetada por projetos, acordos e programas regionais de origem norte-americana como ASPAN, o Plano Colômbia, a Iniciativa Merida, o Comando América e diversos acordos de livre comércio. Todos estes projetos nas suas diversas formas econômicas, políticas e militares, são parte da nova configuração mundial provocada pela globalização transnacional e um enorme obstáculo para o desenvolvimento dos povos indígenas e das cidadanias.
15. Os povos indígenas na reestruturação regional do capital e da soberania dos Estados-nação
A chamada nova ordem mundial que surge de vários fatores decorrentes, nomeadamente, da crise do “socialismo real” e dos modelos econômicos de corte keynesiano nos países capitalistas, não só redefiniu as esferas de influência e de intervenção entre os países do Norte e Sul (anteriormente chamado desenvolvidos e em desenvolvimento); mas também entre os países do norte. A União Européia e a sua antecessora, a Comunidade Econômica Européia e o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), surgiram como um novo paradigma de reestruturação regional do capital. Isso mudou, sem dúvida, pelo menos na América Latina, redefinindo a essência do Estado-nação em questão. Conceitos fundamentais dos Estados-nação como soberania e independência foram fragilizados pelo atual modelo econômico e os povos indígenas estão contribuindo para o vislumbre de transformações e formas eficazes de defesa da soberania nacional. Assim, o alcance e o papel das autonomias nos países latino-americanos também foram afetados por essa reconfiguração global do capital e as fronteiras. De fato, as coordenadas para ser dada a atual discussão sobre as autonomias passam por analisar como o projeto de dominação hemisférica dos EUA – na sua variante Obama-Clinton – destinada a dificultar ou mesmo destruir a existência dos projetos autonômicos, enquanto possíveis expressões de resistência cultural, política, econômica e administrativa.
16. Reformas constitucionais e limites legais para o desenvolvimento da autonomia no México
As reformas constitucionais sobre os direitos feita em abril de 2001, contêm vários impedimentos legais-jurídicos: a todos os direitos reconhecidos e concedidos é colocada uma nota de precaução que restringe, limita e impede a plena aplicação das leis e o exercício efetivo destes direitos, ao fazer referência injustificada a outros artigos da própria Constituição ou de leis secundárias. Estas reformas referem a leis locais o reconhecimento dos povos indígenas e as características da autonomia, o que não é favorável, dada a correlação de forças locais e regionais, se considerarmos a existência de caciques [políticos] poderosos nas etno-regiões. Também instituiu programas assistenciais e clientelistas como parte da Constituição, o que expressa uma contradição com a essência da autonomia, condenando novamente ao indígena a um papel passivo da ação decisiva do Estado; negando às comunidades o estatuto de entidades de direito público e, inversamente, definindo-os como de “interesse público” ou entidades protegidas da política de Estado; e desconhecendo os alcances das autonomias nos níveis municipal e regional em que os povos indígenas os fazem valer, estabelecidos nos Acordos de San Andrés e, portanto, a possibilidade da sua reconstituição. Além disso, esta reforma tem inconsistências em questões sociais e políticas que constituem um retrocesso mesmo em relação a outras leis existentes indígenas em vários estados do México, como Oaxaca, onde se conseguiu definir claramente os conceitos de povo, comunidade, território, livre determinação, autonomia. Especificamente, a reforma introduzida em 2001, viola os Acordos de San Andrés e se tornou numa virtual contra-reforma ao estabelecer o seguinte: a) substituir as noções de terra e território por “locais”, o que de fato desterritorializa os povos indígenas, subtraindo a sua base material de reprodução em quantos povos, como tal, e é ainda um recuo do disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; b) mudar o conceito de “povos” por “comunidades” e, portanto, prejudicar o sujeito de direito reconhecido pelos Acordos de San Andrés e na Convenção 169 da OIT e limitar os poderes locais e regionais destas entidades jurídicas; c) introduz, fora do acordo entre as contra-partes no conflito, as contra-reformas neoliberais ao limitar o artigo 27 da Constituição, a partir do qual é permitida a venda de “terras comunais” e ejidos; d) limitar a capacidade dos povos indígenas para adquirir sua própria mídia. O povo mexicano é na sua origem, desenvolvimento e composição multi-étnico, multicultural e multilíngue. Uma nova Constituinte deve basear-se nessa realidade histórica aprovada pela vontade dos povos indígenas e suas organizações para defender seus direitos coletivos, com fundamento no estabelecimento de múltiplas formas indígenas de auto-governo como parte da sua autonomia, a administração da justiça decorrentes de seus sistemas de regulação, a validade de suas formas de organização social, o reconhecimento de seus territórios e recursos como base material reprodutiva das suas culturas e de acesso pleno a todas as formas de representação popular e nacional.
17. Comunidades Autônomas, o projeto nacional e os direitos dos povos indígenas
Além disso, no caso do México, a luta pelas autonomias é parte de um projeto nacional que tem vindo a crescer ao longo de muitas décadas de exclusão, de miséria e discriminação contra os povos indígenas. Essas autonomias são parte de um projeto nacional, em que os sujeitos autonômicos têm procurado integrar se integrar, juntamente com outros setores da sociedade mexicana. Especificamente, o EZLN se tem dirigido a estudantes, camponeses, trabalhadores, donas de casa, intelectuais, pequenos comerciantes, empregados, profissionais de todas as raças, todas as religiões, todas as etnias para formar uma nação distinta onde, como eles dizem, “caibam todos os mundos.” Não reivindicam a autonomia para dar continuidade à marginalização estrutural de raiz colonial e funcional também na globalização neoliberal. A demanda por autonomia e autodeterminação são maneiras de alcançar uma maior democracia, igualdade de gênero, para combater a discriminação, ingressar em um mercado justo-equitativo no qual eles possam livremente vender os seus produtos e em que os povos indígenas sejam considerados cidadãos e sejam reconhecidos como sujeitos políticos capazes de participar nos processos nacionais. As autonomias, em consequência, expressam uma formulação alternativa às formas nacionais impostas de cima pelos grupos oligárquicos que se basearam na integração-assimilação, ou o diferenciação-segregação que constituíram políticas igualmente provocadoras de etnocídio e negação dos direitos de cidadania dos indivíduos e coletivos dos povos e comunidades indígenas. Assim, as autonomias são processos de democratização, articulação nacional e convivência política – a partir de baixo –, entre agrupamentos heterogêneos na sua composição étnica, linguística e cultural.
Conclusão
18. Autonomias: algo mais que auto-governos
Na América Latina, a partir da imposição das políticas de transnacionalização neoliberal e coincidindo com o ressurgimento das lutas dos povos indígenas para recuperar as suas formas seculares de autogoverno, as autonomias vêm ajudar na defesa, fortalecimento, recuperação e resignificação de suas identidades étnicas, culturas, instituições, conhecimentos, sentimento de pertença, patrimônio, terras e territórios, todos eles baseados no aprofundamento, restauração, recuperação e readaptação das formas comunais de propriedade; o domínio das decisões da assembléia, cargos e tarefas do governo como um serviço; trabalho coletivo gratuito, solidariedade, ajuda mútua e comunalidade como base das relações sociais; festividade também como coesão cultural; concepção do território como uma relação sustentável com a natureza e reprodução material e cosmogônica dos povos. Por isso, queremos insistir que a autonomia: a) constitui algo mais que o tradicional auto-governo indígena; b).- se exprime para além de uma descentralização de poderes, recursos e competência dos Estados; c).- transcende a maioria dos quadros dos processos nacionalitários hegemonizados pelas classes dominantes; d).- não significa arranjos jurídico-administrativos que possam ser estabelecidos por decreto ou através de reconhecimentos formais dentro da ordem constitucional; e).- é implementado – na maior parte dos casos – pela via dos fatos, ou para além das institucionalidades estabelecidas; f).- representa um fenômeno global (holístico) em que as dimensões da economia, cultura, ideologia e política tendem a se integrar e se determinar mútua e reciprocamente no que é denominado a integralidade do sujeito autonômico.
19. Autonomia não é uma fórmula
As formas de organização política da democracia direta surgidas de processos autonômicos indígenas não podem ser aplicadas como fórmulas para organizar a sociedade nacional e o Estado em muitas das suas áreas e complexidades. Porém, foi precisamente a falta de participação da sociedade e dos trabalhadores, em especial no exercício do poder e o controle estatal que o caracterizou e – em parte – acabou com a experiência do socialismo real. Ao destacar a participação de todo o povo nas Juntas de Bom Governo, por exemplo, não se pretende que estas formas de autogoverno sejam generalizadas ou idealizadas, ignorando as suas limitações e os obstáculos impostos pela contra-insurreição e o avanço expropriatório neoliberal. No entanto, sua existência nas áreas zapatistas é uma realidade que deve motivar a sua análise para conceber formas de organização e de participação cidadãs e populares para substituir as máquinas burocráticas que ignoram os mandatos das maiorias. Nesse sentido, o que de prejudicial pode ter para a luta pela construção do socialismo defender a auto-organização para destacar os valores da solidariedade e da comunidade?! Particularmente, no caso dos zapatistas maias, não se faz uma apologia da sua experiência nem se coloca como um “modelo pronto a seguir” para a edificação da sociedade presente e futura. As autonomias indígenas não ignoram o Estado nem o poder exercido desde o monopólio da violência legalizada por um quadro jurídico e legitimada por uma hegemonia de classe. Sob esta premissa, as autonomias são consideradas como formas de resistência e de criação-conformação de um sujeito autonômico que se constitui como interlocutor frente ao Estado e contra o qual impõe uma negociação, mas em paralelo, se isso falhar, se continua construindo a autonomia de fato. Por isso, as autonomias não são concedidas, são conquistadas através de sangrentos levantamentos e extensas mobilizações. Os auto-governos não são considerados “ilhas libertárias dentro do mundo capitalista”. Em “Leitura de um vídeo”, os zapatistas dizem claramente: “o nosso não é um território libertado, e nem uma comuna utópica. Também não é o laboratório experimental de um despropósito ou o paraíso da esquerda órfã.” Os indígenas não difundem uma imagem idílica dos seus movimentos “supondo que estes agrupamentos avançam pulando todos os obstáculos”, uma crítica que não parece basear-se na pesquisa empírica e sim em um conhecimento profundo da autonomia indígena.
20. Processos contraditórios e sob ataque constante
Esses processos não são lineares nem harmoniosos e, portanto, exprimem em suas contradições e desequilíbrios, avanços e retrocessos em muitas maneiras diferentes, extensões e profundidades, provocando mudanças na própria natureza das etnias. Trata-se de uma reconstituição dos povos e envolve necessariamente a construção de um sujeito autonômico que modifica as relações de gênero, entre faixas etárias e instituições coletivas, que também sofrem os impactos da migração, a exploração laboral, o tráfico de drogas, os racismos e a grave deterioração das condições de vida das classes trabalhadoras dos nossos países. Pela sua natureza anti-sistêmica e pela presença indígena em áreas cobiçadas pelo capital e as características da sua atual mundialização, estes processos de autonomia se enfrentam direta ou indiretamente ao Estado, suas instituições e forças repressivas, suas estratégias de contra-insurgência, às estruturas políticas, ideológicas, militares e de inteligência do imperialismo; às corporações econômicas que visam abrir os territórios, ocupá-los, e se apropriar de seus recursos culturais, naturais e estratégicos; as denominações religiosas, partidos políticos e mecanismos políticos destinados a penetrar, mediatizar e destruir os auto-governos e formas coletivas de decisão e organização. Daí, a sua precariedade e sua luta constante para sobreviver e se desenvolver, por estender os seus níveis de articulação intra-comunitária, municipal, regional e nacional, bem como ampliar os espaços de resistência, solidariedade e coordenação internacionais.
21. O significado da autonomia em outros setores da sociedade
A partir das experiências autonômicas dos povos indígenas, Pablo González Casanova, em um importante texto intitulado Com os pobres da terra, apresentado a propósito do 25º aniversário do La Jornada (16 de setembro de 2009), reiterou a extensão do conceito de autonomia para outros sectores explorados e despossuídos da sociedade como uma forma de resposta para a ocupação capitalista dos nossos países. Da mesma forma, o grupo Paz com Democracia no seu Apelo à Nação, disse: “É necessária e inadiável a organização de comunidades autônomas em todo o país, comunidades cujos membros se auto-identifiquem e se autogovernem democraticamente para a produção-intercâmbio-defesa da sua alimentação, suas necessidades básicas, da sua educação e conscientização, com crianças, mulheres, idosos e homens para a defesa da vida, do patrimônio público, dos povos e da nação, para a preservação do meio ambiente e o fortalecimento dos espaços seculares e dos espaços para o diálogo, que nos unem em meio de diferenças ideológicas e valores compartilhados” (La Jornada, novembro de 2007). Em alguns países da América Latina, as autonomias tornaram-se uma via estratégica pela qual os sujeitos étnicos fazem valer sua identidade étnica, afirmam as suas diferenças e constroem formas de vida alternativas. A autonomia é uma estratégia de resistência e, neste sentido, é também uma estratégia de luta nacional e social. Se avançarmos na discussão do seu significado, das suas distintas naturezas, da sua utilidade política, estaremos contribuindo a gerar as condições da transformação crítica da realidade. Os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso ao capitalismo, para preservar a espécie humana de sua auto-destruição e democratizar as nossas sociedades.
Notas
[1] Este texto é uma exposição elaborada para o Ciclo de Conferências “O pensamento crítico e as ciências sociais”. Celebrando 80 anos do Instituto de Investigações Sociais da UNAM 1930-2010, entre 4 e 14 de Maio de 2010.
[2] Refiro-me ao projeto com o acrônimo Latautonomy que foi desenvolvido entre 2001 e 2005 sob a coordenação do Instituto Ludwig Boltzmann para a América Latina, de Viena (Áustria), cuja hipótese central tinha como síntese: “Autonomias culturais na América Latina: uma condição necessária para o desenvolvimento sustentável”. Este projeto foi financiado e apadrinhado pela Direção-Geral de Ciências e Tecnologia da União Européia e levado a cabo em oito países: México, Nicarágua, Panamá, Bolívia, Equador, Brasil, Espanha e Rússia. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, Autonomías indígenas en América Latina: Nuevas formas de convivencia política, México: UAM-Plaza y Valdés, 2005. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, México: UAM- Plaza y Valdés, 2008.
[3] A este respeito a hipótese de Latautonomy afirma: “Hipótese de Territorialidade: Quanto maior é o controle de um sistema ou sujeito autonômico sobre um determinado território, menor é o perigo da destruição massiva dos recursos naturais e, por isso, maior é a sustentabilidade do sistema. Os fatores mais importantes que conduzem à apropriação do território pelo sujeito autonômico são: a) Conhecimentos específicos sobre a utilização dos recursos naturais (‘conhecimento local’); b) A coesão social na base de um bem comum culturalmente definido (‘capital local’); e c) A autonomia política nos processos de decisão. Relação investigada: Territorialidade-Autonomia. Fórmula Breve: Territorialidade = autonomia política + Cultura”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit.
[4] Latautonomy desenvolve assim a sua hipótese: “Hipótese da Interculturalidade: Quanto maior é o grau de multi ou interculturalidade, maior é a possibilidade de o sujeito autonômico se consolidar como força pluriétnica e de conseguir a autonomia político-jurídica pela via da negociação com o Estado nacional. O diálogo intercultural é ao mesmo tempo condição e consequência para um diálogo político, que deveria levar finalmente ao reconhecimento jurídico da autonomia por parte do Estado nacional. Relação Investigada: Interculturalidade-Política. Fórmula Breve: Interculturalidade = + Reconhecimento Jurídico”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit.
[5] Ver capítulo a respeito: “Antropologia e os povos indígenas no México” em Gilberto López y Rivas, Autonomías: democracia o contrainsurgencia, México: Editorial ERA, 2005. Pp. 13-28.
[6] A este respeito Latautonomy sustenta: “Hipótese da rede: A sustentabilidade de um sistema autonômico depende da sua capacidade para vincular o nível das comunidades locais com uma estrutura regional de forma horizontal e interativa. Através de um processo de integração a partir de baixo, devem ser criadas estruturas políticas econômicas participativas que se articulam, tanto no interior das autonomias multiculturais como para fora, gerando um projeto de sociedade alternativa. Esta hipótese pronuncia-se contra qualquer localismo etnocentrista e contra as representações hierárquicas que impedem o desenvolvimento de mecanismos participativos na tomada de decisões políticas. Relação Investigada: Política-Cultura (Democracia Participativa). Fórmula Breve: Rede de Comunidades Locais = Estrutura Regional”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit..
[*] Gilberto López y Rivas é doutor em Antropologia, professor e pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e História - Centro Regional Morelos, em Cuernavaca (México).
Texto originalmente publicado (em castelhano) no site Rebelión, aqui. Tradução do Passa Palavra.