quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Emma Goldman (Projeto Proximo Tópico: Introdução por Carlo Romani · Sobre Individualismo e Revolução Social)



Emma Goldman (1869 — 1940) foi uma anarquista conhecida por seu ativismo, seus escritos políticos e conferências que reuniam milhares de pessoas nos Estados Unidos. Teve um papel fundamental no desenvolvimento do anarquismo na América do Norte na primeira metade do século XX.

Nascida em Kovno, no Império Russo (atual Kaunas, na Lituânia), Goldman emigrou para os Estados Unidos da América em 1885 e viveu em Nova Iorque, onde conheceu e passou a fazer parte do florescente movimento anarquista. Atraída pelo anarquismo após a Revolta de Haymarket, Goldman tornou-se uma renomada ensaísta de filosofia anarquista e escritora, escrevendo artigos anticapitalistas bem como sobre a emancipação da mulher, problemas sociais e a luta sindical. Ela e o escritor anarquista Alexander Berkman, seu amante e companheiro por toda vida, planejaram assassinar Henry Clay Frick como uma ação de propaganda pelo ato. Embora Frick tenha sobrevivido ao atentado, Berkman foi sentenciado a vinte e dois anos na cadeia. Goldman foi presa várias vezes nos anos que se seguiram, por "incentivar motins" e ilegalmente distribuir informações sobre contracepção. Em 1906, Goldman fundou o jornal anarquista Mother Earth (Mãe Terra).

Em 1917, Goldman e Berkman foram sentenciados a dois anos na cadeia por conspirarem para "induzir pessoas a não se alistarem" no serviço militar obrigatório, que havia sido recentemente instituído nos Estados Unidos. Depois de serem soltos da prisão, foram novamente presos - junto com centenas de outros progressistas - sendo deportados para a Rússia. Inicialmente simpatizantes da Revolução Bolchevique daquele país, Goldman rapidamente expressou sua oposição ao uso de violência dos sovietes e à repressão das vozes independentes. Em 1923, ela escreveu sobre suas experiências entre os bolcheviques, dando forma ao livro Minha Desilusão na Rússia (My Disillusionment in Russia). Enquanto viveu em Inglaterra, Canadá e França escreveu uma autobiografia chamada Vivendo Minha Vida (Living My Life). Com o início da Guerra Civil Espanhola, em 1936, Emma, já com mais de 60 anos, viajou até a Espanha para apoiar a Revolução Anarquista.

Durante sua vida, Goldman foi celebrada por seus admiradores, como uma livre pensadora e "mulher rebelde", e achincalhada pelos adversários, como sendo defensora de assassinatos políticos e revoluções violentas. Seus escritos e conferências abrangeram uma variedade de assuntos, incluindo natureza da pena de prisão, ateísmo, liberdade de expressão, militarismo, capitalismo, casamento e emancipação das mulheres. Também desenvolveu novas formas de incorporar políticas de gênero no anarquismo.

Após décadas de obscuridade, nos anos 1970 o legado de Emma voltou novamente a ser reconhecido na medida em que acadêmicas feministas e anarquistas passaram a se interessar em conhecer mais e divulgar sua trajetória e sua obra. É creditada a ela a famosa frase: "Se não posso dançar, não é minha revolução" - que define de maneira simples a ideia anarquista de liberdade.

Emma Goldman faleceu na cidade de Toronto, no Canadá em 14 de Maio de 1940.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

A mídia, os intelectuais e Pierre Bourdieu. Por Jacques Bouveresse


A mídia, os intelectuais e Pierre Bourdieu

Em um tempo em que crítica à mídia tornou-se um produto apreciado até por ela própria, a obra de Bourdieu, que fornece instrumentos para compreender como se dá a dominação cultural e simbólica, suscita contra ela uma unanimidade reveladora.
por Jacques Bouveresse

Cada dia que passa temos mais uma oportunidade de observar o enorme vazio criado pela morte de Pierre Bourdieu e de constatar o quanto se tornou arcaico o modelo do intelectual crítico, do qual provavelmente ele terá sido o último grande representante na França. A meu ver, o que está substituindo esse modelo foi muito bem descrito por Jean-Claude Milner, quando escreveu em seu panfleto Existe-t-il une vie intellectuelle en France ? (Existe uma vida intelectual na França?): "À primeira exortação a servir, sucedeu a segunda: ?deixem de nos ofuscar com inúmeras provas de um saber excessivo ou de uma lucidez desagradável?, acrescentaram os notáveis. Não basta servir, é preciso também se mostrar humilde. Existiram retóricos para formar os doutrinários dessa humildade do Collège de France à imprensa. Daí o intelectual de hoje, pusilânime diante dos fortes, duro diante dos fracos, ambicioso sem projeto, ignorante sob os ouropéis do pedantismo, impreciso de estilo minucioso, inexato de estilo detalhista" 1 .

Mesmo que, como acontece quase sempre nesse caso, provavelmente Milner tenha tendência a idealizar um pouco o período anterior, o que diz parece basicamente certo e corresponde à chegada ao poder de um tipo de intelectual de quem Bourdieu conhecia particularmente bem os costumes e o comportamento, e de quem ele pressentiu e descreveu o advento. Há pouco tempo, propus denominar "intelectual deferente" o tipo de intelectual que evita cuidadosamente dar a impressão de saber mais ou de ter mais consciência que outros e que não perde a oportunidade de manifestar seu respeito por todas as formas de poder, econômicas, políticas e midiáticas, pelas autoridades morais e religiosas, pelas crenças populares e até, se for o caso, pelas idéias feitas.

A evolução, no período atual, constitui uma das questões sobre as quais sempre tive oportunidade de conversar com Bourdieu nos últimos anos. E é importante salientar que ele faz parte justamente daqueles que se opuseram até o fim à idéia de praticar a humildade sob a forma falaciosa que é recomendada atualmente, em outras palavras, à idéia de fazer concessões e de aceitar o acomodamento demandado em relação à competência e ao saber, com a esperança de conseguir contentar o maior número possível de pessoas. Ele jamais considerou que a tarefa do intelectual, mesmo e sobretudo a do sociólogo, pudesse ser, como se demanda cada vez mais, hoje, de se limitar a simplesmente retratar o social sob todos seus aspectos, inclusive os mais inaceitáveis, evitando o máximo possível julgá-lo e formular apreciações suscetíveis de chocar ou de ofender os atores.

Ataques virulentos

Enquanto o marxismo concentrou-se no poder econômico, Bourdieu forneceu instrumentos que permitiam compreender melhor a dominação cultural e simbólica

Para Bourdieu, a tarefa do sociólogo jamais consistiu, de acordo com uma expressão utilizada pelo orientador da tese de Elisabeth Teissier, em se ocupar essencialmente de "aspirar o social", inclusive, eventualmente, no que ele pode ter de mais nauseabundo para alguém que conservou determinadas exigências morais e intelectuais, mas em adquirir um conhecimento real dos mecanismos que o governam, por meio de métodos que nada têm de natural e de imediato, um conhecimento que não só é desejável, mas indispensável, para se conseguir ter êxito em transformá-lo.

Esse aspecto do problema é fundamental para se compreender alguns dos mais virulentos ataques enfrentados por Bourdieu nos últimos anos de sua vida. Ele se achava em uma posição de alguém que dá a impressão de defender uma posição cientificista e elitista contra o que se pode chamar a democracia e a igualdade em matéria de conhecimento e de crença. Este é o modelo do intelectual deferente adotado por Philippe Sollers quando, em um artigo intitulado "Pelo pluralismo midiático", publicado no dia 18 de setembro de 1998 no Le Monde, caracteriza nossa época como "uma época de pluralidades, incertezas, caras sempre novas, surpresas, interseções, confrontos, singularidades irredutíveis", e recomenda ao intelectual aceitar a partir de então, tratando em pé de igualdade todas as formas de contradição e de debate, qualquer que seja sua origem e seu grau de competência e seriedade, aqueles que expressam um ponto de vista diferente do seu.

Alain Finkielkraut expressa de forma ainda mais clara quando sugere que, ao contrário das aparências, o que Bourdieu ataca não é o poder abusivo das mídias, mas o que se pode chamar de "incontrolabilidade democrática". O que ele não aceita, "não é seu reinado, e sim que outras vozes se façam ouvir em pé de igualdade com a sua, não é o estreitamento do espaço público, e sim sua existência" 2.

Engajamento na ação política

Se um intelectual pode, enquanto tal, ser útil aos mais pobres, realmente só pode ser pelo que ele representa e pelo que é capaz de fornecer, ou seja, o conhecimento. Mas é suficiente?

Essa é uma questão sobre a qual é particularmente necessário insistir. Desde que a mídia se tornou, aos olhos de uma parte do próprio mundo intelectual e, de qualquer maneira, certamente dos intelectuais mais midiáticos, a personificação do pluralismo democrático, de acordo com o que, na realidade, é preciso compreender o relativismo e o subjetivismo mais completo em matéria de convicção e de crença ("essa é minha opinião, essa é minha escolha etc."), um intelectual que se dedique a criticar meios de comunicação, sobretudo se o faz de um ponto de vista que se apresenta como o do conhecimento objetivo e, o que é pior, até científico, tem todas as chances de ser acusado de se negar a participar do jogo da democracia real.

Considera-se, em geral, que com a publicação de La Misère du monde, em 1993, foi dada uma guinada importante no itinerário intelectual de Bourdieu, uma vez que foi naquele momento que ele se engajou completamente na ação política e midiática. Essa maneira de apresentar as coisas é, obviamente, muito discutível, pois os escritos de Bourdieu, desde os primeiros, que estão relacionados à experiência da colonização na Argélia, até os mais recentes, sempre apresentaram o mesmo caráter altamente engajado. Mas ainda mais curiosa é a idéia, também muito difundida, que de alguma maneira Bourdieu deixou de ser um intelectual quando se tornou militante (em outras palavras, partidário). Thomas Ferenczi, em um artigo do Monde de 19 de janeiro de 2001, intitulado "Les intellectuels dans la bataille", escreve que, nos últimos anos, Bourdieu "renunciou, em um grande número de suas intervenções, à postura de intelectual para adotar a do militante."

Uma afirmação mais que contestável e que Bourdieu certamente não teria aceitado, uma vez que ele não acreditava que uma presença mais ativa no cenário público e o tratamento de questões como, por exemplo, a da mídia em geral e da televisão, em particular, suscetíveis de atrair mais atenção do grande público, devam custar a renúncia à atitude científica. Por mais que se possa dizer ou escrever sobre essa questão, de qualquer maneira, ele jamais pensou que a postura de militante pudesse substituir a do saber sobre as questões da ciência.

Pela subversão simbólica

As verdades da sociologia crítica podem perfeitamente ser interiorizadas de um modo mais ou menos cínico sem que isso mude muita coisa no comportamento dos interessados

Como diz Alain Accardo, "é (...) submetendo-se o mais escrupulosamente possível ao dever de objetividade ditado pela moralidade científica que o intelectual, lutando para impor simbolicamente a verdade do mundo social, se dá as melhores chances de cumprir, ao mesmo tempo, seu dever moral de solidariedade com os oprimidos para os quais ele leva armas de subversão simbólica da ordem estabelecida" 3 . Não mais nos últimos anos como no início, Bourdieu pensou que pudesse ter aí uma escolha a fazer entre a pesquisa do conhecimento objetivo e os imperativos da ação política e social. E mesmo sobre as questões que, em princípio, interessam a todo o mundo, continuou convencido de que existe um abismo entre o tratamento metódico, preciso e intelectual do sociólogo profissional e a retórica e a verborréia pelas quais os intelectuais estimados pela mídia, que lhes dá mais habitualmente a palavra, buscam a maior parte do tempo substituí-lo. Em outras palavras, ele sempre esteve convencido de que, em matéria de engajamento, em primeiro lugar há coisas a saber e a compreender, e não só posições a tomar e protestos a fazer.

Em La Misère du monde, que foi um best Eller e contribuiu para que a sociologia se tornasse conhecida por um grande número de pessoas que provavelmente a ignoravam inteiramente e não tinham a menor razão específica para por ela se interessarem, Bourdieu manifestou pública e solenemente seu engajamento ao lado de todos os excluídos de nossa sociedade, ao começar por um capítulo dedicado àqueles que personificam, hoje, no mais alto grau, o sofrimento, a humilhação e, às vezes, a indignidade social. Tratava-se, é claro, fundamentalmente dos sofrimentos do proletariado moderno, se admitirmos que ainda existe hoje um grupo, uma classe ou, de qualquer maneira, uma realidade social que merece ser chamada por esse nome, uma questão sobre a qual Bourdieu, por sua vez, não tinha a menor dúvida. Mas a miséria social não é uma simples questão de pobreza material e, obviamente, pode servir de exemplo, de muitas maneiras, no próprio mundo intelectual.

Pensar com Marx, mas contra Marx

Bourdieu foi alguém que sempre se revoltou com a miséria do mundo em todas as suas formas. De minha parte, compartilho inteiramente do ponto de vista expresso por Gérard Noiriel em um livro recente sobre o que se pode denominar a radicalidade do engajamento e a violência do estilo que, segundo ele, dela resultam: "A sociologia de Bourdieu assim como a filosofia de Foucault (...) me dão argumentos para continuar a pensar com Marx, mas contra Marx. Dois elementos me permitem fazer a transição. Em primeiro lugar, a violência do estilo de Bourdieu não deixava nada a desejar à dos marxistas. O que me seduzia muito na época, pois eu estava convencido que um discurso radical refletia necessariamente um engajamento radical. Em seguida, a sociologia de Bourdieu ilustrava, à sua maneira, a palavra de ordem leninista que eu tinha feito minha no início da década de 70: "somente a verdade é revolucionária". Em outras palavras, para ser útil aos mais pobres, basta descobrir e dizer a verdade. Mas o dispositivo que propunha Bourdieu me parecia muito mais satisfatório que o anterior, pois ele punha a pesquisa empírica no primeiro plano em vez de fazer discursos abstratos sobre a luta de classes e a ciência da história. Além disso, enquanto o marxismo concentrou-se no poder econômico, Bourdieu forneceu instrumentos que permitiam compreender melhor a dominação, cultural e simbólica, da qual descobri a importância no momento do conflito de Longwy. Eu dispunha, a partir de então, de todo um arsenal de argumentos para apoiar a crítica aos "porta-vozes" que os homens da siderurgia tinham feito publicamente" 4 .

A constatação de Noiriel poderia, acredito, ser repetida por um grande número de intelectuais de minha geração, que tiveram com o pensamento e o trabalho de Bourdieu o mesmo tipo de relação. Sempre ouvi Bourdieu declarar (principalmente quando criticava o modo de pensamento e o comportamento dos discípulos de Louis Althusser), em um tom meio gozador meio sério, que ele era o único intelectual francês realmente marxista da época. Com isso, queria dizer que era o único a fazer o trabalho de análise e de pesquisa empírica sobre a realidade social que um marxista de hoje deveria considerar obrigatório fazer.

O conhecimento e emancipação dos oprimidos

Um melhor conhecimento como aquele que devemos à sociologia e às ciências humanas pode não estimular um esforço de emancipação, mas, ao contrário, levar à resignação e ao cinismo

Em que medida ele realmente acreditava que, para ser útil aos mais pobres, bastava descobrir e revelar a verdade sobre o mundo social? Sem dúvida, ele considerava isso uma condição necessária, o que é compreensível uma vez que, se um intelectual pode, enquanto tal, ser útil aos mais pobres, realmente só pode ser pelo que ele representa e pelo que é capaz de fornecer, ou seja, o conhecimento. Mas sobre a questão de saber se a condição necessária é também suficiente, Bourdieu era, creio eu, ou em todo caso se tornou, ao longo dos anos mais hesitante. É um problema que conheço relativamente bem, porque o discuti muitas vezes com ele e faz parte daqueles sobre os quais realmente nunca chegamos a um acordo.

Na verdade, sempre achei um tanto otimista a idéia de que um conhecimento e uma compreensão a mais devam produzir necessariamente ou possam produzir freqüentemente um efeito de libertação sobre aquele ao qual é fornecido. É uma suposição que me parece, sobretudo no período atual, constantemente desmentida pelos fatos. As verdades da sociologia crítica podem perfeitamente ser interiorizadas de um modo mais ou menos cínico sem que isso mude muita coisa no comportamento dos interessados: continua-se a agir como antes, mas sabendo as conseqüências disso e escondendo-se atrás do fato que, do ponto de vista do próprio sociólogo, todo o mundo faz praticamente o que estava previsto e simplesmente não o pode fazer de outra maneira.

Resignação e cinismo intelectual

Várias vezes Bourdieu me disse que tinha ficado profundamente chocado com o que eu escrevera, em Rationalité et cynisme, a propósito da maneira que um melhor conhecimento como aquele que devemos à sociologia e às ciências humanas, em geral, pode, na verdade, não estimular um esforço de emancipação, mas, ao contrário, levar à resignação e ao cinismo. Com toda certeza, é chocante, mas infelizmente não é muito contestável. O uso hoje feito de intelectuais que, em sua época, foram considerados os mais subversivos, como Foucault, que se tornou, ao que parece, um autor de referência para alguns pensadores do Medef (sigla de Mouvement des Entreprises de France, organização patronal), constitui uma interessante confirmação disso. Alain Accardo certamente tem razão de salientar que, em todo caso, se a visão de Bourdieu das relações sociais suscitou tanta hostilidade entre os membros do establishment "é porque ela convida aqueles que a levam a sério a se mostrar conseqüentes e a escolher seu lado" 5 .

Se a visão de Bourdieu das relações sociais suscitou tanta hostilidade entre os membros do establishment "é porque ela convida aqueles que a levam a sério a escolher seu lado"

Mas pode-se temer que, infelizmente, não há nada a que o homem atual se habitue tão facilmente e que acabe lhe parecendo tão natural como a inconseqüência. Pensar de uma maneira e agir de outra infelizmente pode também se tornar um hábito e até mesmo constituir o hábito moderno por excelência.

Evidentemente, pode-se também se tranqüilizar ao dizer que, por sua vez, Bourdieu se manteve o inimigo número 1, unanimemente reconhecido e abertamente revelado, de todos os defensores da ordem liberal, e que seu pensamento não se submeteu durante muito tempo a um processo de recuperação como o que assinalei. Como constata Michel Onfray, há nesse momento uma notável unanimidade, muito reveladora e, em última análise, muito tranqüilizadora, que se expressa contra ele. E explica: "A razão disso é simples e evidente: Pierre Bourdieu manifesta claramente sua luta contra o capitalismo em sua versão liberal e, conseqüentemente, herda como inimigos todos aqueles que defendem essa política, direita e esquerda juntas, ou seja, a maioria dos jornais, com exceção de poucos, uma parcela ínfima em que se pode ler verdadeiras homenagens, sem crítica alusiva nem perfídia expressa por um antigo discípulo, nem reserva emitida em entrelinhas por um panfletário hábil e diplomata. Ora, os intelectuais, pensadores, filósofos e outros atores do mundo das idéias, que expressam nitidamente sua oposição à dominação liberal e ao futuro do planeta integralmente submetido à lei do mercado, são pouco numerosos em uma época em que o dinheiro como horizonte intransponível fornece o credo em torno do qual se organizam as tomadas de posição ideológicas, nacionais e internacionais" 6.

A crítica midiática na mídia

Apesar de tudo, quando se pergunta sobre a capacidade que os intelectuais podem ter de agir sobre o mundo e de contribuir para transformá-lo, tem-se a obrigação de salientar imediatamente que não há nada mais fácil e mais corrente do que acreditar no que dizem os mais críticos e, entre eles, os mais radicais, e ao mesmo tempo abster-se de tirar disso qualquer conseqüência. É uma questão que se coloca com uma acuidade particular a propósito das chances de sucesso que podem ser atribuídas à denúncia dos abusos de poder dos quais o sistema midiático se torna culpado.

Gostaríamos de poder dar razão a Bourdieu quando ele afirma que a crítica teórica e intelectual na mídia é suscetível de levar a uma tomada de consciência e, por esse caminho, a uma modificação dos comportamentos individuais e, talvez, a uma melhora das coisas. Ele explica em seu livro sobre a televisão: "Tenho a convicção (e o fato de apresentá-las em uma cadeia de televisão o testemunha) que análises como essas talvez contribuam, em parte, para mudar as coisas. Todas as ciências têm essa pretensão. Auguste Comte dizia: ?Ciência e daí previsão, previsão e daí ação?. As ciências sociais têm direito a essa ambição assim como as outras ciências?" 7 . Sou, antes de mais nada, cético em relação aos resultados aos quais a sociologia crítica da mídia levou até agora. Mas a honestidade me obriga a dizer que não sei mais do que outros o que ainda pode ser eficaz contra um poder tão desmedido e tão armado e protegido como aquele em questão. Se a visão de Bourdieu das relações sociais suscitou tanta hostilidade entre os membros do establishment "é porque ela convida aqueles que a levam a sério a escolher seu lado"

Sem dúvida, Michel Onfray tem razão ao responder, àqueles que formularam contra Bourdieu a crítica grotesca de ter sido "o mais midiático de todos os inimigos da mídia", que "a crítica midiática da mídia não constitui de maneira alguma uma contradição" 8 . Ele escreve: "O que dizem os sofistas que associam crítica da televisão à obrigação de nela não se apresentar? Que a crítica do funcionamento da mídia se efetua somente no deserto? Que a alternativa consiste em se render a ela para adular as potências que convidam ou a nunca nela se apresentar a fim de preservar sua capacidade crítica? Vejo nisso um erro de raciocínio, pois existe uma outra possibilidade: render-se a elas e criticá-las, em seguida demonstrar a legitimidade de uma crítica midiática da mídia" 9 .

A eficácia dos pensadores midiáticos

Há nesse momento uma notável unanimidade, muito reveladora, que se expressa contra Bourdieu, por ele manifestar claramente sua luta contra o capitalismo em sua versão liberal

Como todos os pensadores midiáticos, Onfray simplifica demasiadamente as coisas quando suspeita a priori da pureza de motivação dos inflexíveis (é claro que Bourdieu não pertence a essa categoria), ao sugerir que, se eles se recusam a aparecer na televisão, isso só pode ser porque jamais foram convidados ou porque sabem que não o seriam facilmente10 . Eu me pergunto se, infelizmente, ele não corre o risco de ser obrigado a incluir na categoria dos "cenobitas leigos instalados nos cumes mais próximos do céu das idéias em que o nada, o vazio e a ausência reinam como mestre" 11 pensadores como Jules Vuillemin pelos quais Bourdieu tinha justamente a maior admiração e pensava que estavam entre os raros a ter exatamente algo de substancial a dizer hoje. Se, no que diz respeito à televisão, ao rádio e aos jornais, a "presença crítica" é, sem dúvida, preferível a "um silêncio tão improdutivo quanto o nada" 12 , a maioria dos intelectuais que utilizam esse argumento para justificar a resposta afirmativa que dão às solicitações dos meios de comunicação me parecem se tornar muito rapidamente mais presentes do que realmente críticos - algo que, em compensação, certamente não se poderia dizer de Bourdieu. Mas não é essa a questão que quero discutir aqui.

A questão não me parece ser exatamente saber se podemos ou não criticar com êxito (em particular, com um certo êxito midiático) a mídia na mídia. Sem dúvida, a crítica midiática da mídia é possível e até poderíamos dizer programada e almejada pelo próprio sistema. Mas todo o problema é saber que chances ela tem de produzir efeitos reais e se conseguiu até hoje, ou conseguirá amanhã, desestabilizar de alguma maneira o poder que ela ataca e modificar, mesmo que pouco, uma evolução que parece ter se tornado praticamente inevitável e sobre a qual ninguém, há muito tempo, parece mais ter meios de agir.

A crítica esquecível

Christopher Lasch observa que "... a comunicação de massa, por sua própria natureza, reforça, a exemplo da cadeia de montagem, a concentração do poder e a estrutura hierárquica da sociedade industrial. Ela não o faz difundindo uma ideologia autoritária feita de patriotismo, de militarismo e de submissão como tantos críticos de esquerda o afirmam, mas destruindo a memória coletiva, substituindo as autoridades em que era possível confiar por um star system de um novo gênero, e tratando todas as idéias, todos os programas políticos, todas as controvérsias e todos os conflitos como sujeitos igualmente dignos de interesse do ponto de vista da atualidade, igualmente dignas de prender a atenção dispersa do espectador e, conseqüentemente, igualmente esquecíveis e sem a menor significação" 13

Nessas condições, não se sabe muito bem o que poderia impedir que a crítica da mídia constituísse um assunto midiático capaz, como qualquer outro, de manter por um momento a atenção dispersa do leitor ou do espectador, mas ao mesmo tempo tão esquecível e tendo todas as chances de ser tão rapidamente esquecida quanto qualquer outra. Portanto, não é necessário ser elitista, puritano ou espírito de porco para se colocar questões sérias sobre a eficácia de uma crítica da mídia formulada na mídia e sobre o comportamento dos intelectuais que se orgulham de conseguirem ser ao mesmo tempo midiáticos e críticos. Para explicar o que se passa, de maneira alguma é necessário recorrer a uma teoria do complô ou imputar uma perversidade especial aos atores relacionados, particularmente aos mais poderosos.

Para Bourdieu, não há forças do mal agindo no mundo social. Simplesmente, há sistemas dos quais é preciso descrever a lógica ou, para utilizar a linguagem de Bourdieu, áreas cujo funcionamento obedece a leis que, se não são imediatamente passíveis de ser conhecidas, no entanto não têm o menor segredo.

Dominação e linguagem

A desigualdade nas condições de acesso à linguagem e ao controle das formas impostas da boa e bela linguagem constitui um dos fatores de discriminação mais importantes

Do mesmo modo que Kraus, Bourdieu não criticou os jornalistas com o objetivo de desculpar os intelectuais. Gérard Noiriel escreve que "a crítica dos intelectuais é, sem dúvida, a pedra angular de toda a sociologia de Bourdieu A noção de "poder simbólico" que ele elaborou para explicar essa forma de dominação parte da idéia de que todas as relações sociais são mediatizadas pela linguagem" 14 . Esse é um ponto de fato inteiramente crucial em Bourdieu. A desigualdade nas condições de acesso à linguagem e ao controle das formas impostas da boa e bela linguagem constitui um dos fatores de discriminação mais importantes entre os que exercem e os que são condenados a se submeter ao poder simbólico - e ao poder em geral no que ele tem necessariamente de simbólico - e uma das fontes principais da distinção entre os dominantes e os dominados.

Bourdieu retomou constantemente a questão do considerável privilégio daqueles que têm os meios de atuar de uma maneira que passa fundamentalmente pela linguagem e por sua capacidade de fazer com que o outro aceite uma representação da realidade, que não tem necessidade de ser objetiva para ser crível - e no entanto não o é a maior parte do tempo -, mas que é concebida para apresentar a realidade a seu favor e servir a seus próprios fins. O poder simbólico é, sobretudo, o poder de levar os dominados a perceberem e descreverem as coisas como aqueles que ocupam posições dominantes têm interesse que eles vejam e descrevam.

É o que acontece, obviamente, com intelectuais, de quem Bourdieu pensa que sua relação com a linguagem e sua possibilidade de criar o mundo do qual falam, simplesmente ao falarem sobre ele, estão na origem de uma dificuldade especial que lhes torna extremamente problemático, para não dizer impossível, o acesso à realidade propriamente dita, e mais especialmente à realidade social. Mas é o que acontece também com todos os produtores de discursos e, em particular, com políticos e jornalistas. Pode-se pensar que isso realmente acontecerá cada vez mais, uma vez que governar tornou-se hoje algo quase sinônimo de comunicar.

(Trad.: Wanda Caldeira Brant)

* Titular da cadeira de filosofia no Collège de France. Autor de Bourdieu, savant et politique, que será lançado no dia 17 de fevereiro pela Editions Agone, do qual este artigo foi extraído.

1 - Jean-Claude Milner, Existe-t-il une vie intellectuelle en France? Editions Verdier, Lagrasse, 2002, p. 24.
2 - Alain Finkielkraut, "Sauver l’innocence et le secret ", Le Monde, 18 de setembro de 1998.
3 - Alain Accardo, " Un savant engagé ", Awal, Cahiers d?études berbères, n° 27-28, 2003.
4 - Gérard Noiriel, Penser avec, penser contre, Itinéraire d’un histor.


Chiapas: aproximação entre zapatistas, MST e Movimento Consulta Popular- Entrevista especial com Ricardo Gebrin


Chiapas: aproximação entre zapatistas, MST e Movimento Consulta Popular? Entrevista especial com Ricardo Gebrin

Em dezembro de 2007, os zapatistas, movimento inspirado pela luta de Emiliano Zapata contra o regime autocrático de Porfírio Diaz, que encandeou a Revolução Mexicana de 1910, promoveram um Colóquio Internacional, na cidade de Chiapas, com o intuito de debater a América Latina e seus rumos. Ricardo Gebrin, membro da Coordenação Nacional do Movimento Consulta Popular, participou do encontro e narrou esse acontecimento à IHU On-Line, na entrevista a seguir, realizada por e-mail.

“A burguesia mexicana é um inimigo hábil e experiente. Sua estratégia central para enfrentar o EZLN é intensificar a presença do capitalismo numa região que historicamente sempre foi abandonada pelo Estado. Passaram a desenvolver diversos mecanismos de desestruturação e cooptação de comunidades indígenas. Estimularam o surgimento de grupos paramilitares e promoveram um constante ataque às comunidades”, contou Gebrin. Para ele, “o Colóquio representou uma sinalização importante da aproximação dos zapatistas não só com o MST e a Consulta Popular, mas com as organizações e movimentos sociais de nosso continente”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor esteve em Chiapas participando do Colóquio Internacional promovido pelos zapatistas. Com que imagens e pensamentos saiu de lá?

Ricardo Gebrin - O Colóquio foi um momento importante para os debates de caráter estratégico em nosso continente. Foi organizado no formato de conferências coletivas, em que o porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional, Subcomandante Marcos (1), participou de todas as mesas de debate. Entre os convidados para os painéis se encontravam: Sylvia Marcos, Naomi Klein (2), Inmanuel Wallerstein, Pablo González Casanova (3), Enrique Dussel (4), Sergio Rodríguez Lascano, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Gustavo Esteva (5), John Berguer (6), Jean Robert, Jorge Alonso, Ernesto Ledesma, Luis Villoro (7) e Gilberto Valdés. Tive o privilégio de participar de uma mesa com François Houtart (8), Peter Rosset e o Subcomandante Marcos. Ao fazer a fala final, em cada um dos painéis, o Subcomandante elaborava uma síntese das questões centrais. Ele apresentou sete pontos que me parecem sistematizar bem a essência dos debates.

  1. Não se pode entender e explicar o sistema capitalista, sem o conceito de guerra. Sua sobrevivência e crescimento defendem fundamentalmente a guerra e todas as suas implicações. É através dela que o capitalismo desaloja, intensifica sua exploração, reprime e discrimina. Em sua etapa neoliberal, os capitalistas desencadeiam uma guerra contra toda a humanidade;
  2. Para aumentar seus lucros, os capitalistas não só apelam para a redução de custos de produção, aumento de preços das mercadorias. Agregam ainda três outras formas: o aumento de produtividade, a produção de novas mercadorias e a abertura de novos mercados;
  3. A produção de novas mercadorias e a abertura de novos mercados se realiza com a conquista e reconquista de territórios e espaços sociais que antes não tinham interesse para o capital. Há um destaque para os conhecimentos ancestrais e códigos genéticos, além de recursos naturais como água, florestas e até mesmo o ar, todos encarados enquanto preciosas mercadorias de mercados a serem desbravados. Os que se encontram detentores destes conhecimentos, espaços sociais e territórios, inevitavelmente, se convertem em inimigos do capital;
  4. O capitalismo não tem como destino inevitável sua autodestruição, salvo se isso resultar numa destruição de toda a humanidade.
  5. A destruição do sistema capitalista somente se realizará se um ou muitos movimentos o enfrentam e o derrotam em seu núcleo central, isto é, na propriedade privada dos meios de produção;
  6. As transformações reais de uma sociedade, isto é, as relações sociais em um determinado momento histórico, são principalmente aquelas que se enfrentam com o capitalismo em seu conjunto. Atualmente, já não são possíveis reformas progressivas;
  7. As grandes transformações não começam “por cima”, nem com feitos monumentais e épicos, senão através de persistentes movimentos, algumas vezes, pequenos em sua forma, que aparecem como irrelevantes para os analistas que olham “de cima”. A história se transforma, a partir da construção consciente de organizações e forças sociais que se conhecem e reconhecem mutuamente, desde baixo e à esquerda, e constroem uma outra política.

IHU On-Line - Os zapatistas falam da estratégia de “Guerra de baixa intensidade” contra as forças da direita. Do que se trata essa estratégia?

Ricardo Gebrin - Todos os elementos de uma “Guerra de Baixa Intensidade” estão presentes no conflito que enfrentam atualmente. A burguesia mexicana é um inimigo hábil e experiente. Sua estratégia central para enfrentar o EZLN é intensificar a presença do capitalismo numa região que historicamente sempre foi abandonada pelo Estado. Passaram a desenvolver diversos mecanismos de desestruturação e cooptação de comunidades indígenas. Estimularam o surgimento de grupos paramilitares e promoveram um constante ataque às comunidades. Já em 1997, houve o massacre de Acteal, no qual 45 indígenas tzotziles foram assassinados por paramilitares enquanto rezavam numa capela. Desde então, pequenos ataques e agressões ocorrem de forma cotidiana. O objetivo é ir gerando um cerco, isolamento e desgaste das comunidades. Por outro lado, o EZLN enfrenta essa guerra de baixa intensidade, respeitando o acordo firmado em 1994, através do qual cessou suas atividades bélicas. Esta é a situação atual, que exige uma constante e articulada solidariedade internacional para enfrentar o cerco.

IHU On-Line - As “juntas de bom governo” são a estrutura central da organização popular nos territórios zapatistas. Trata-se do exercício de uma democracia direta e participativa?

Ricardo Gebrin - Sem dúvida, as “Juntas de Bom Governo” são importantes experiências de construção de Poder Popular e democracia participativa. Trata-se de uma experiência marcada pelo processo histórico de organização dos povos indígenas.

IHU On-Line - Sobre o subcomandante Marcos, que papel de fato ele joga no movimento zapatista?

Ricardo Gebrin - O Subcomandante Marcos é um quadro político extremamente capaz. Mais do que um mero porta-voz, possui grande capacidade de elaboração política e compreensão do atual momento histórico. Como toda a construção coletiva, o movimento zapatista vem formando novos quadros, e esta é a única garantia para um projeto revolucionário.

IHU On-Line - 2010 é uma data histórica para o México, com os duzentos anos da libertação dos espanhóis e cem anos da independência. Vai acontecer algo?

Ricardo Gebrin - A esperança de que 2010 seja uma data decisiva na história do México está presente no imaginário popular. Sem dúvida, isso acaba se convertendo num elemento subjetivo com potencialidade, mas é algo no campo da esperança e da profecia. O importante é assinalar que a crescente probabilidade de uma crise profunda na economia dos Estados Unidos poderá determinar o final de um ciclo muito favorável ao capitalismo e, realmente, inaugurar um novo período para a luta de classes. Oxalá essa mística das datas se concretize!

IHU On-Line - O movimento social brasileiro olha com muito respeito para o movimento social mexicano, porém a sua articulação com o zapatismo sempre foi frágil. O MST e o movimento zapatista estão entre os dois principais movimentos sociais latino-americanos, mas não se percebe uma articulação consistente. Quais são as razões?

Ricardo Gebrin - O Colóquio representou uma sinalização importante da aproximação dos zapatistas não só com o MST e a Consulta Popular, mas com as organizações e movimentos sociais de nosso continente. Esse processo de construção de uma articulação entre os movimentos sociais da América Latina exige paciência, recursos e muita habilidade. Nos últimos anos, a necessidade de trocar experiências e aprofundar as relações se intensificou. Em especial, a luta contra a ALCA foi um poderoso estímulo para este processo. Iniciativas como a construção de um Conselho Social da ALBA, composto por movimentos sociais, abrem um novo período para que as organizações populares construam espaços e articulações muito mais consistentes.

IHU On-Line - Quais são as semelhanças que o senhor identifica entre a concepção política dos zapatistas no México e do Movimento Consulta Popular no Brasil?

Ricardo Gebrin - Guardadas as proporções e os processos históricos distintos, a experiência da “Outra Campanha” implementada pelos zapatistas no México e a Consulta Popular no Brasil são as duas únicas iniciativas da esquerda em nosso continente, que ousaram questionar a lógica da centralidade na luta eleitoral. Somente por isso, já teríamos uma forte identidade. A disputa eleitoral, gradativamente, foi deixando de ser um elemento tático para se converter no principal e, algumas vezes, único objetivo estratégico. Essa lógica passou a determinar a formação ideológica e os valores da militância. Ousar questioná-la não é simples, acarreta isolamento e ataques generalizados dos que se acomodaram ou sobrevivem nessa lógica. Mas nossa identidade não se limita a essa ousadia teórica. Também nos identificamos na construção de um projeto, no qual a conduta de cada militante não é voltada para acumular cargos, postos ou vantagens, mas se converter neste construtor coletivo, cuja melhor definição é “querer ser como o Che”.


Notas:
(1) Subcomandante Marcos é o porta-voz do movimento zapatista no sudeste mexicano. Em 9 de fevereiro de 1995, o governo do México declarou publicamente que conhecia a identidade de Marcos, identificando-o como sendo Rafael Sebastián Guillén Vicente, ex-professor da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM) da Cidade do México. Guillén nasceu no México, filho de imigrantes espanhóis, e estudou no instituto jesuíta em Tampico. Depois, se mudou para a capital do México, onde se formou em filosofia na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) com o trabalho de tese "Filosofia e educação: práticas discursivas e práticas ideológicas em livros de escola primária". Depois, começou a trabalhar como professor na Universidad Autónoma Metropolitana e logo iniciou sua atividade com os zapatistas. Marcos sempre negou ser Rafael Guillén. Familiares dizem ignorar o paradeiro de Rafael, e afirmam que nunca foi realmente confirmado que Marcos e Rafael eram a mesma pessoa. Como muitas pessoas de sua geração, foi afetado pela Matança de Tlatelolco, em 1968, e ingressou em uma organização maoísta, passando posteriormente ao zapatismo. Depois de ingressar no EZLN, Marcos transformou sua ideologia, rodeado de visões revolucionárias mais pós-modernas, outras idéias expostas em seus discursos e ações estão mais relacionadas com os ideais marxistas do italiano Antonio Gramsci, muito populares no México quando estudava na Universidade.

(2) Naomi Klein é uma jornalista, escritora e ativista canadense. Em 2000, publicou No logo (traduzido como Sem logo - A tirania das marcas em um planeta vendido), que para muitos se transformou em um manifesto do movimento antiglobalização. O livro traz efeitos negativos da cultura consumista e as pressões impostas de grandes empresas sobre seus trabalhadores. Em 2002, publicou Fences and windows (em português Cercas e janelas), uma coleção de matérias escrita por ela sobre o movimento antiglobalização no mundo como movimento zapatista e os protestos contra OMC e FMI. Em 2004, Klein e o marido Avi Lewis fizeram um documentário chamado The take, no qual contam sobre os trabalhadores autônomos na Argentina.

(3) Pablo González Casanova é um sociólogo e crítico mexicano condecorado pelo UNESCIO, em 2003, com o Prêmio Internacional José Martí por sua defesa em relação à identidade dos povos indígenas da América Latina.

(4) Enrique Dussel é um filósofo argentino exilado desde 1975 no México. É um dos maiores expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano em geral. Autor de uma grande quantidade de obras, seu pensamento recorre a temas como filosofia, política, ética e teologia. Tem se colocado como crítico da pós-modernidade, chamando por um novo momento denominado transmodernidade. Tem mantido diálogos com filósofos como Apel, Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard Rorty e Lévinas, sendo um crítico do pensamento eurocêntrico contemporâneo. Radicado na França em 1961, estuda Teologia e História na Sourbonne. Obtém um título em estudos de Religião no Instituto Católico de Paris, em 1965. Em 1968, regressa a Mendoza para lecionar Ética na Universidad Nacional de Cuyo. Entre 1969 e 1973, começa uma radiante etapa de sua reflexão e formula pela primeira vez a possibilidade de uma filosofia da libertação. Vai de encontro aos pensamentos de Heidegger e Husserl. Sua leitura de Emmanuel Lévinas produz, segundo suas palavras, o "despertar do sonho ontológico". A ditadura militar começa a lhe ser hostil. Sofre um atentado a bomba, em sua casa, em 1973. Acusam-no de ser marxista e começam a ser freqüentes as ameaças de morte por grupos paramilitares. É expulso da Universidad Nacional de Cuyo em 1975. Seus livros são proibidos e as publicações que dirigia são censuradas. Nesse mesmo ano, se exila no México onde trabalhou Departamento de Filosofia da Universidad Autónoma Metropolitana, unidade de Iztapalapa (1975) e na Universidad Nacional Autónoma de México (1976).

(5) Carlos Esteva é um ativista mexicano, importante intelectual e fundador da Universidad de la Tierra, na cidade de Oaxaca, no México. É também um ex-oficial do governo Echeverría e conselheiro do Exercito Zapatista de Libertação Nacional, em Chiapas, para negociações com o governo. Trabalha no Centro para Diálogos Interculturais e Trocas, em Oaxaca.

(6) John Peter Berger é um crítico de arte, romancista, pintor e escritor inglês. Entre suas obras mais conhecidas, estão o romance G., vencedor do Booker Prize de 1972, e o ensaio introdutório em crítica de arte Ways of seeing, escrito como acompanhamento da significativa série homônima da BBC, e freqüentemente usado como texto universitário.

(7) Luís Villoro Toranzo é um filósofo español naturalizado mexicano. É professor emérito da Universidade Nacional Autônoma do México, onde também licenciou-se em Letras e doutorou-se em filosofia. Desempenha funções, também, como Embaixador do México na UNESCO.

(8) François Houtart é um sacerdote católico e sociólogo marxista. Nasceu na Bélgica. Foi o fundador do Centro Tricontinental, que funciona na Universidade Católica de Lovaina. Está fortemente ligado ao movimento da Teologia da Libertação, da qual é considerado um dos expoentes mais radicais, ao ponto de estar ligado à revolução sandinista, na Nicarágua.

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América Latina, hoje

PassaPalavra: Teses em torno da autonomia dos povos índios- Por Gilberto López y Rivas

Publicado originalmente no Sítio Passa Palavra!
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Teses em torno da autonomia dos povos índios

Nesta abordagem sócio-antropológica de López y Rivas, “os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso o capitalismo”
.- Por Gilberto López y Rivas [*]

Teses em torno da autonomia dos povos índios

13 de Agosto de 2010

Nesta abordagem sócio-antropológica de López y Rivas, “os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso o capitalismo”. Por Gilberto López y Rivas [*]

Introdução [1]

As seguintes linhas têm o propósito de refletir e reavaliar a vigência das lutas pela autonomia indígena, assim como os sujeitos políticos que a encarnam no contexto da crise geral e civilizatória do capitalismo e, em particular, a recomposição estatal causada pela transnacionalização neoliberal em vários países latino-americanos.

Particularmente irei deter-me no caso mexicano, dado que segui de muito perto e até estive próximo de movimentos sociais e políticos que reivindicam os direitos indígenas.

autonomia

1. Definição da historicidade do conceito

A partir das investigações realizadas na América Latina [2] concebemos a autonomia basicamente como um processo de resistência mediante o qual as etnias ou povos soterrados, negados ou esquecidos fortalecem ou recuperam a sua identidade através da reivindicação da sua cultura, dos seus direitos e das suas estruturas político-administrativas. De uma forma geral a autonomia, isto é, a regência pelas próprias leis, define-se como a capacidade de indivíduos, governos, nacionalidades, povos e outras entidades e sujeitos para assumirem os seus interesses e ações mediante normativas e poderes próprios, consequentemente opostos a toda a dependência ou subordinação heterônoma. Como qualquer conceito, a autonomia indígena contemporânea deve ser compreendida no seu contexto histórico: a luta dos povos originários por conservarem e fortalecerem a sua integridade territorial e cultural através de autogovernos que praticam a democracia participativa e enfrentam – com uma estratégia anti-sistêmica – a espoliação e a violência do sistema capitalista na sua atual fase de transnacionalização neoliberal. Mesmo se, perante este fenômeno coercivo chamado globalização, a figura política do Estado-nação se torna obsoleta e incômoda, é difícil negar que, para além do mercado e do consumo, existam povos que reclamam uma origem e uma identidade. São sujeitos que desejam imprimir um sentido comunitário às suas vidas num tempo em que o egoísmo, o individualismo e a concorrência pretendem sobrepor-se à solidariedade, dignidade e fraternidade. As autonomias na América Latina projetam-se hoje em dia como aqueles espaços político-territoriais onde os povos oprimidos podem consolidar, no âmbito local, regional e até nacional, as suas expressões comunitárias de democracia direta.

2. Democratização e transformação da vida indígena

Destacamos o caráter dinâmico e transformador das autonomias que, para o serem, modificam os [seus] próprios atores e em dimensões diversas: as relações entre gêneros, entre gerações, promovendo neste caso o protagonismo das mulheres e dos jovens; democratizando as sociedades indígenas, politizando ou inovando as suas estruturas políticas e socioculturais. Faz-se notar a importância da participação das mulheres nos diversos níveis e espaços da vida comunitária e municipal, em particular nas instâncias de decisão e exercício do autogoverno indígena, pela qual se consegue uma sociedade mais justa e equitativa, desenvolvendo ações concretas para combater todo o tipo de violência contra as mulheres indígenas. O estudo das autonomias indígenas contemporâneas na América Latina, particularmente no México, numa perspectiva integral e comparativa, mostra a natureza transformadora destes processos não só na sua articulação, as mais das vezes contraditória com os Estados nacionais existentes, mas também no interior dos sujeitos autonômicos. Assim, não se trata apenas da existência de autogovernos tradicionais indígenas que se desenvolvem de diversas formas ao longo da colonização e da vida independente, e que perduram até os nossos dias em numerosas comunidades da geografia latino-americana. Também não se trata de competências e atribuições estabelecidas de cima para baixo, administrativamente ou por modificações constitucionais, reivindicações mínimas e máximas de modelos que não correspondem a realidades concretas e que denotam os limites de uma ciência social a reboque dos processos sócio-étnicos. As práticas autonômicas atuais vão mais longe. Quando os zapatistas – por exemplo – transcendem o autogoverno e o assumem a partir dos princípios de mandar obedecendo, da rotação dos cargos de autoridade, da revogação do mandato, da participação planejada e programada de mulheres e jovens, da reorganização equitativa e sustentável da economia, da adoção de uma identidade política anticapitalista e anti-sistêmica e da busca de alianças nacionais e internacionais que lhe sejam afins, está-se a levar a cabo uma mudança qualitativa das autonomias: e paralelamente transformam-se os próprios povos indígenas nas suas relações de gênero e grupos etários, nos seus processos de identidade política, étnica e nacional, na sua apropriação regional do território e na extensão do poder de baixo para cima.

imagemfundo3. Controle do território e dos seus recursos

Perante a agressão permanente das grandes empresas em busca de territórios, recursos e saberes dos povos, a autonomia procura redefinir a relação com o meio que a rodeia. Na profundidade de território busca-se a união complementar de produtores e comercializadores para desenvolver uma economia solidária e a autosuficiência alimentar, assim como a geração de projetos econômicos para benefício geral, otimizando todos os esforços para o exercício real da autonomia como tarefa de todos e de todas. A defesa dos sujeitos econômicos contra a ação do mercado e seus agentes estatais significa o controle do território a partir de baixo (comunidades) e a partir da sociedade civil nacional e internacional que por vezes acompanha estes movimentos. Reafirma-se a urgência de recuperar ou desenvolver a autonomia econômica, produtiva e alimentar dos povos com o fortalecimento do cultivo do milho autóctone (não o transgênico), o uso de adubos orgânicos (e a recusa dos agroquímicos), os cuidados com a água, o uso e a proteção de sementes próprias; assim como a recriação e fortalecimento dos sistemas de ajuda mútua, dos mercados e tianguis [mercados indígenas ao ar livre de origem pré-hispânica] locais e regionais e o aproveitamento das ecotécnicas. Perante a grave crise alimentar que ameaça a humanidade e as mudanças climáticas, a autonomia procura fortalecer a produção de alimentos e a introdução de programas e planos educativos nos seus diversos âmbitos e níveis que estimulem o respeito pela agricultura própria e, em especial, o milho. Os povos e comunidades indígenas são proprietários e herdeiros de terras, territórios e recursos naturais onde vivem e, por conseguinte, exigem respeito e reconhecimento desse direito por parte do Estado e das empresas nacionais e estrangeiras que se empenham nos seus afãs de privatização e de comercialização. Por isso estão a exigir o fim de todo e qualquer projeto, ação ou concessão que atentem contra a propriedade, o uso, a exploração, o aproveitamento e a integridade de territórios, terras, lugares sagrados e recursos naturais dos povos índios, assim como de leis, decretos e regulamentos que tendam a despojar e facilitar o aproveitamento por terceiros, alheios às comunidades indígenas dos seus recursos naturais. [3]

4. Diálogo intercultural

Os processos educativos e de socialização, do mesmo modo, são gerados a partir das, e pelas, comunidades, levando em conta os saberes surgidos dos povos e de outros atores populares, e aqueles que possam enriquecer os sujeitos autonômicos, no pressuposto de que o diálogo intercultural fortalece a autonomia. Esta situação é mais notória e necessária quando dois ou mais povos confluem em um mesmo processo autonômico (Chiapas, regiões da Guatemala e da Nicarágua, por exemplo) e a unidade do sujeito autonômico frente ao Estado transnacionalizado se torna indispensável, já que nas atuais circunstâncias este sujeito se opõe diretamente aos agentes estatais (funcionários, polícias, exército, juízes, etc.) ao serviço do capital. Nestes casos deve mesmo dar-se uma representatividade pluriétnica aos órgãos de autoridade e recordando sempre – como faz o subcomandante insurgente Marcos – que a autonomia é tão importante que não podemos deixá-la nas mãos dos políticos profissionais. [4]

5. Política de alianças

Se a autonomia é parte da questão nacional, o movimento indígena que pratica e promove as autonomias, na sua luta por prevalecer, estabelece as alianças necessárias, primeiro entre os próprios povos indígenas e, a partir daí, com os setores oprimidos e explorados do país em questão. Isto significa a permanente construção do sujeito autonômico, não só a partir de baixo mas também nas suas alianças com outros atores políticos e a partir do controle sistemático dos representantes através da prestação de contas, da revogação do mandato, conforme os casos, e da rotação dos cargos. Nunca foi posta em dúvida a matriz classista imposta pelo capital nem o tipo de Estado em que se encontram imersas as lutas pelas autonomias e, consequentemente, a necessidade de alianças dos movimentos indígenas com todos quantos apresentam reformas democráticas, contra o capitalismo e até pela construção de um novo tipo de socialismo. Não foi da responsabilidade dos povos indígenas o pouco interesse mostrado por partidos e organizações da esquerda no estabelecimento de acordos para uma luta unificada nos terrenos político, eleitoral ou de mobilização social. Há exemplos, alguns trágicos, do uso instrumental dos indígenas nos processos políticos institucionais e também nos espaços da guerra revolucionária. Do mesmo modo, os movimentos autonomistas indígenas não praticam um culto da resistência popular espontânea. Usualmente os seus movimentos são precedidos de longas deliberações e, como demonstra a insurreição zapatista de 1994, tiveram de passar muitos anos até o início da rebelião e até agora não foram dados passos que resultassem da espontaneidade ou do aventureirismo políticos. Este movimento demonstra o valor que é atribuído à consciência e à organização dos oprimidos e explorados na luta contra um Estado que os procura desgastar e mesmo destruir, política e militarmente.

cruz_cuadrada6. Desenvolvimento desigual das autonomias

É evidente que todos estes processos não são levados a cabo simultaneamente nas etno-regiões e em todos os casos em que é exercido o autogoverno indígena, destacando-se a profundidade de alguns deles que, por razões específicas, puderam desenvolver formas organizativas – inclusive político-militares – como o EZLN, que dão coerência e integralidade às práticas autonômicas. Existem situações, por exemplo, em que a dependência econômica ou política do povo indígena em relação aos mecanismos do mercado e aos aparelhos estatais atrofia o processo autonômico, caso dos yaquis, onde se revela distorcido até para os seus próprios atores que referem que a sua autonomia “é relativa”. Noutras situações, o caciquismo ou o paramilitarismo ameaçam diretamente a autonomia com a repressão generalizada e a criminalização dos que se destacam no processo, caso de Xochistlahuaca, Guerrero, ou entre os triqui de Oaxaca. Por isso se insiste no caráter intrínseco de mudança, adaptação, reação e inovação das autonomias em função dos fatores internacionais, nacionais, regionais e locais que os povos indígenas enfrentam. Onde o significado múltiplo e polivalente do termo e, por vezes até, a recusa de utilizá-lo em algumas experiências que, como a polícia comunitária de Guerrero, é uma tentativa de governar-se e fazer justiça pelas suas próprias normas, o que é, na essência, o denominador comum de todo o processo autonômico.

7. Indigenismo antitético de autonomia

A formação e o fortalecimento do sujeito autonômico passam também pela ruptura com as velhas formas das políticas indigenistas durante muitos anos praticadas pelo Estado para manter o controle dos povos e das comunidades indígenas, mediante o paternalismo e o clientelismo. O movimento indígena independente do Estado revela que indigenismo e autonomia são conceitos antitéticos. [5]

8. Autonomia e sistema de partidos de Estado

Também comprovamos que a ingerência de partidos políticos na maioria dos casos deteriora, e até leva ao fracasso, o exercício autonômico. No caso mexicano, o reservatório de votos que o partido oficial (nos tempos do sistema do partido de Estado no México) impunha através do sistema de cacicagem indígena vê-se seriamente afetado por um movimento indígena que, inclusive, rejeita frontalmente o atual sistema de partidos de Estado e nutre as maiores dúvidas sobre as deterioradas componentes da democracia tutelada, e se impõe, no seu lugar, outra forma coletiva de fazer política. A partir do etnocentrismo da sociedade nacional só a democracia representativa é possível e é negada toda a experiência relacionada com as democracias diretas das comunidades indígenas, as quais desenvolvem uma cultura política de resistência, que é a própria base dos atuais processos autonômicos.

9. Sujeito autonômico, rede multiétnica contra conflitos comunitários

A experiência zapatista e as de outros processos na América Latina mostram que o desenvolvimento de uma rede multiétnica consolidada de comunidades e regiões, e até de diferentes povos, é outra das mudanças transcendentes nas atuais autonomias, nas quais as cisões intracomunitárias por conflitos seculares, por limites territoriais ou por recursos podem ser superadas para responderem unidos à intrusão violenta dos Estados e às grandes empresas capitalistas. Todas as transformações internas, rupturas e redefinições nos âmbitos comunitários, regionais e nacional, são impossíveis sem essa conformação e fortalecimento de um sujeito autonômico com capacidade de afirmação hegemônica para dentro, de tal modo a contribuir para a coesão interna através da construção de consensos, da democracia participativa, da tolerância e da superação das divisões religiosas, étnicas ou políticas, da luta contra a corrupção e contra as tentativas de cooptação por parte do Estado e dos seus agentes. Este sujeito incita a mobilização dos povos e comunidades em defesa dos seus direitos e reivindicações e tem o apoio para uma representação legítima para fora.

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10. Autonomias pluriétnicas e plurinacionais e sua contribuição para a nação democrática

As autonomias indígenas contemporâneas estão longe dos estereótipos de autarquia que os seus adversários predisseram como sendo inerente a esses fenômenos. Pelo contrário, como se observa em muitos países da América Latina, a irrupção dos povos indígenas nos acontecimentos políticos dos seus respectivos países é uma realidade inegável. Esses processos autonômicos propõem-se mudanças substanciais na própria natureza desses países como entidades plurinacionais, pluriétnicas, pluriculturais e plurilinguísticas, e reafirma os indígenas como sujeitos políticos de direitos coletivos irrenunciáveis no seu caráter de povos e nacionalidades. Neste sentido, uma das conclusões fundamentais da investigação Latautonomy foi a seguinte:

“Recusando de igual modo a aculturação modernizante e o recuo tradicionalista, denunciando a sua exclusão e a sua dominação históricas, os povos e movimentos indígenas afirmam-se historicamente pela primeira vez com as suas especificidades nos espaços públicos para reclamarem o reconhecimento das suas contribuições potenciais para a construção da sociedade futura e da sua contribuição para “um outro mundo possível”. As reivindicações dos povos indígenas, os valores que defendem – o bem comum e a solidariedade, o respeito pela natureza e a noção de equilíbrio, a recusa das lógicas de consumismo e a preeminência dos valores imateriais, a busca da harmonia e do consenso – vão mais longe do que os interesses estreitamente comunitários. Constituem a afirmação de valores que permitem uma adesão universal e transcendem os limites da etnicidade”. (Monique Munting, “Radiografía de la autonomías multiculturales en América Latina”, en Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas. El Universo Autonómico: propuesta para una nueva democracia. Ob. cit.).

11. Rumo à integralidade da autonomia e da sua dimensão regional

A partir da perspectiva mais ampla de autonomia, como é expressa no terreno político, jurídico, dos direitos econômicos, sociais e culturais e que o fundamento da implementação a nível comunitário, municipal e regional, reafirma-se o valor e a importância das práticas políticas que se materializam em assembléias comunitárias, os “sistemas de cargo”, o tequio [trabalho coletivo em prol da comunidade] e, em geral, as obrigações e contribuições comunitárias. Isso destaca a importância da coordenação e interação entre comunidades e municípios indígenas para o exercício da autonomia a nível regional, como garantido na aprovação pelas Nações Unidas da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas e também, em Acordos de San Andrés de 1996. [6]

12. A autonomia se opõe à cultura política hegemônica

A autonomia é construída a partir de uma lógica diferente da cultura política hegemônica, a qual se opõe por definição. Não tem nada a ver com a limpeza étnica, o etnicismo e autarquia, e trata de olhar em forma autocrítica seu próprio ambiente para erradicar a reprodução de práticas clientelistas e políticas corporativas. Pretende reconstruir e dar um novo significado profundo à cultura democrática, quer dizer: a tolerância, o diálogo, a escolha racional. Estas vêm se constituindo como os instrumentos mais valiosos para a resolução dos conflitos decorrentes das suas diferentes origens étnicas, suas identidades diversas e os diferentes padrões morais e culturais.

13. A autonomia para a construção de uma civilização contra sistêmica

É importante discutir e consolidar essas experiências latino-americanas de autonomia, com as existentes em outros países e continentes, em outras culturas, pois a luta pelas autonomias tem como horizonte uma civilização diferente da que prevalece hoje, mesmo nos cantos mais remotos do planeta. Refiro-me à civilização hegemônica do capital, na qual a produção e reprodução da vida humana está subordinada à produção e reprodução de mercadorias, e ao tempo que existem recursos naturais, conhecimentos científicos, e as tecnologias para garantir o alimento para toda a humanidade, mas em que prevalece uma racionalidade instrumental, onde a fome, a exploração e os desastres ecológicos são justificados em nome do enriquecimento constante de uma quinta parte da população que detém o 86% da riqueza global.

ls50-f14. Autonomia, transformando a resistência e os projetos imperiais

Pensar na autonomia e sua relação com os Estados-nação latino-americanos implica uma responsabilidade teórica e política com uma resistência revolucionária e transformadora contra o projeto hemisférico dos Estados Unidos e seus aliados que tentam continuar impondo sobre o continente o que já desponta como uma nova expressão da mundialização do capital. América Latina está sendo afetada por projetos, acordos e programas regionais de origem norte-americana como ASPAN, o Plano Colômbia, a Iniciativa Merida, o Comando América e diversos acordos de livre comércio. Todos estes projetos nas suas diversas formas econômicas, políticas e militares, são parte da nova configuração mundial provocada pela globalização transnacional e um enorme obstáculo para o desenvolvimento dos povos indígenas e das cidadanias.

15. Os povos indígenas na reestruturação regional do capital e da soberania dos Estados-nação

A chamada nova ordem mundial que surge de vários fatores decorrentes, nomeadamente, da crise do “socialismo real” e dos modelos econômicos de corte keynesiano nos países capitalistas, não só redefiniu as esferas de influência e de intervenção entre os países do Norte e Sul (anteriormente chamado desenvolvidos e em desenvolvimento); mas também entre os países do norte. A União Européia e a sua antecessora, a Comunidade Econômica Européia e o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), surgiram como um novo paradigma de reestruturação regional do capital. Isso mudou, sem dúvida, pelo menos na América Latina, redefinindo a essência do Estado-nação em questão. Conceitos fundamentais dos Estados-nação como soberania e independência foram fragilizados pelo atual modelo econômico e os povos indígenas estão contribuindo para o vislumbre de transformações e formas eficazes de defesa da soberania nacional. Assim, o alcance e o papel das autonomias nos países latino-americanos também foram afetados por essa reconfiguração global do capital e as fronteiras. De fato, as coordenadas para ser dada a atual discussão sobre as autonomias passam por analisar como o projeto de dominação hemisférica dos EUA – na sua variante Obama-Clinton – destinada a dificultar ou mesmo destruir a existência dos projetos autonômicos, enquanto possíveis expressões de resistência cultural, política, econômica e administrativa.

16. Reformas constitucionais e limites legais para o desenvolvimento da autonomia no México

As reformas constitucionais sobre os direitos feita em abril de 2001, contêm vários impedimentos legais-jurídicos: a todos os direitos reconhecidos e concedidos é colocada uma nota de precaução que restringe, limita e impede a plena aplicação das leis e o exercício efetivo destes direitos, ao fazer referência injustificada a outros artigos da própria Constituição ou de leis secundárias. Estas reformas referem a leis locais o reconhecimento dos povos indígenas e as características da autonomia, o que não é favorável, dada a correlação de forças locais e regionais, se considerarmos a existência de caciques [políticos] poderosos nas etno-regiões. Também instituiu programas assistenciais e clientelistas como parte da Constituição, o que expressa uma contradição com a essência da autonomia, condenando novamente ao indígena a um papel passivo da ação decisiva do Estado; negando às comunidades o estatuto de entidades de direito público e, inversamente, definindo-os como de “interesse público” ou entidades protegidas da política de Estado; e desconhecendo os alcances das autonomias nos níveis municipal e regional em que os povos indígenas os fazem valer, estabelecidos nos Acordos de San Andrés e, portanto, a possibilidade da sua reconstituição. Além disso, esta reforma tem inconsistências em questões sociais e políticas que constituem um retrocesso mesmo em relação a outras leis existentes indígenas em vários estados do México, como Oaxaca, onde se conseguiu definir claramente os conceitos de povo, comunidade, território, livre determinação, autonomia. Especificamente, a reforma introduzida em 2001, viola os Acordos de San Andrés e se tornou numa virtual contra-reforma ao estabelecer o seguinte: a) substituir as noções de terra e território por “locais”, o que de fato desterritorializa os povos indígenas, subtraindo a sua base material de reprodução em quantos povos, como tal, e é ainda um recuo do disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; b) mudar o conceito de “povos” por “comunidades” e, portanto, prejudicar o sujeito de direito reconhecido pelos Acordos de San Andrés e na Convenção 169 da OIT e limitar os poderes locais e regionais destas entidades jurídicas; c) introduz, fora do acordo entre as contra-partes no conflito, as contra-reformas neoliberais ao limitar o artigo 27 da Constituição, a partir do qual é permitida a venda de “terras comunais” e ejidos; d) limitar a capacidade dos povos indígenas para adquirir sua própria mídia. O povo mexicano é na sua origem, desenvolvimento e composição multi-étnico, multicultural e multilíngue. Uma nova Constituinte deve basear-se nessa realidade histórica aprovada pela vontade dos povos indígenas e suas organizações para defender seus direitos coletivos, com fundamento no estabelecimento de múltiplas formas indígenas de auto-governo como parte da sua autonomia, a administração da justiça decorrentes de seus sistemas de regulação, a validade de suas formas de organização social, o reconhecimento de seus territórios e recursos como base material reprodutiva das suas culturas e de acesso pleno a todas as formas de representação popular e nacional.

pa_mola17. Comunidades Autônomas, o projeto nacional e os direitos dos povos indígenas

Além disso, no caso do México, a luta pelas autonomias é parte de um projeto nacional que tem vindo a crescer ao longo de muitas décadas de exclusão, de miséria e discriminação contra os povos indígenas. Essas autonomias são parte de um projeto nacional, em que os sujeitos autonômicos têm procurado integrar se integrar, juntamente com outros setores da sociedade mexicana. Especificamente, o EZLN se tem dirigido a estudantes, camponeses, trabalhadores, donas de casa, intelectuais, pequenos comerciantes, empregados, profissionais de todas as raças, todas as religiões, todas as etnias para formar uma nação distinta onde, como eles dizem, “caibam todos os mundos.” Não reivindicam a autonomia para dar continuidade à marginalização estrutural de raiz colonial e funcional também na globalização neoliberal. A demanda por autonomia e autodeterminação são maneiras de alcançar uma maior democracia, igualdade de gênero, para combater a discriminação, ingressar em um mercado justo-equitativo no qual eles possam livremente vender os seus produtos e em que os povos indígenas sejam considerados cidadãos e sejam reconhecidos como sujeitos políticos capazes de participar nos processos nacionais. As autonomias, em consequência, expressam uma formulação alternativa às formas nacionais impostas de cima pelos grupos oligárquicos que se basearam na integração-assimilação, ou o diferenciação-segregação que constituíram políticas igualmente provocadoras de etnocídio e negação dos direitos de cidadania dos indivíduos e coletivos dos povos e comunidades indígenas. Assim, as autonomias são processos de democratização, articulação nacional e convivência política – a partir de baixo –, entre agrupamentos heterogêneos na sua composição étnica, linguística e cultural.

Conclusão

18. Autonomias: algo mais que auto-governos

Na América Latina, a partir da imposição das políticas de transnacionalização neoliberal e coincidindo com o ressurgimento das lutas dos povos indígenas para recuperar as suas formas seculares de autogoverno, as autonomias vêm ajudar na defesa, fortalecimento, recuperação e resignificação de suas identidades étnicas, culturas, instituições, conhecimentos, sentimento de pertença, patrimônio, terras e territórios, todos eles baseados no aprofundamento, restauração, recuperação e readaptação das formas comunais de propriedade; o domínio das decisões da assembléia, cargos e tarefas do governo como um serviço; trabalho coletivo gratuito, solidariedade, ajuda mútua e comunalidade como base das relações sociais; festividade também como coesão cultural; concepção do território como uma relação sustentável com a natureza e reprodução material e cosmogônica dos povos. Por isso, queremos insistir que a autonomia: a) constitui algo mais que o tradicional auto-governo indígena; b).- se exprime para além de uma descentralização de poderes, recursos e competência dos Estados; c).- transcende a maioria dos quadros dos processos nacionalitários hegemonizados pelas classes dominantes; d).- não significa arranjos jurídico-administrativos que possam ser estabelecidos por decreto ou através de reconhecimentos formais dentro da ordem constitucional; e).- é implementado – na maior parte dos casos – pela via dos fatos, ou para além das institucionalidades estabelecidas; f).- representa um fenômeno global (holístico) em que as dimensões da economia, cultura, ideologia e política tendem a se integrar e se determinar mútua e reciprocamente no que é denominado a integralidade do sujeito autonômico.

19. Autonomia não é uma fórmula

As formas de organização política da democracia direta surgidas de processos autonômicos indígenas não podem ser aplicadas como fórmulas para organizar a sociedade nacional e o Estado em muitas das suas áreas e complexidades. Porém, foi precisamente a falta de participação da sociedade e dos trabalhadores, em especial no exercício do poder e o controle estatal que o caracterizou e – em parte – acabou com a experiência do socialismo real. Ao destacar a participação de todo o povo nas Juntas de Bom Governo, por exemplo, não se pretende que estas formas de autogoverno sejam generalizadas ou idealizadas, ignorando as suas limitações e os obstáculos impostos pela contra-insurreição e o avanço expropriatório neoliberal. No entanto, sua existência nas áreas zapatistas é uma realidade que deve motivar a sua análise para conceber formas de organização e de participação cidadãs e populares para substituir as máquinas burocráticas que ignoram os mandatos das maiorias. Nesse sentido, o que de prejudicial pode ter para a luta pela construção do socialismo defender a auto-organização para destacar os valores da solidariedade e da comunidade?! Particularmente, no caso dos zapatistas maias, não se faz uma apologia da sua experiência nem se coloca como um “modelo pronto a seguir” para a edificação da sociedade presente e futura. As autonomias indígenas não ignoram o Estado nem o poder exercido desde o monopólio da violência legalizada por um quadro jurídico e legitimada por uma hegemonia de classe. Sob esta premissa, as autonomias são consideradas como formas de resistência e de criação-conformação de um sujeito autonômico que se constitui como interlocutor frente ao Estado e contra o qual impõe uma negociação, mas em paralelo, se isso falhar, se continua construindo a autonomia de fato. Por isso, as autonomias não são concedidas, são conquistadas através de sangrentos levantamentos e extensas mobilizações. Os auto-governos não são considerados “ilhas libertárias dentro do mundo capitalista”. Em “Leitura de um vídeo”, os zapatistas dizem claramente: “o nosso não é um território libertado, e nem uma comuna utópica. Também não é o laboratório experimental de um despropósito ou o paraíso da esquerda órfã.” Os indígenas não difundem uma imagem idílica dos seus movimentos “supondo que estes agrupamentos avançam pulando todos os obstáculos”, uma crítica que não parece basear-se na pesquisa empírica e sim em um conhecimento profundo da autonomia indígena.

20. Processos contraditórios e sob ataque constante

Esses processos não são lineares nem harmoniosos e, portanto, exprimem em suas contradições e desequilíbrios, avanços e retrocessos em muitas maneiras diferentes, extensões e profundidades, provocando mudanças na própria natureza das etnias. Trata-se de uma reconstituição dos povos e envolve necessariamente a construção de um sujeito autonômico que modifica as relações de gênero, entre faixas etárias e instituições coletivas, que também sofrem os impactos da migração, a exploração laboral, o tráfico de drogas, os racismos e a grave deterioração das condições de vida das classes trabalhadoras dos nossos países. Pela sua natureza anti-sistêmica e pela presença indígena em áreas cobiçadas pelo capital e as características da sua atual mundialização, estes processos de autonomia se enfrentam direta ou indiretamente ao Estado, suas instituições e forças repressivas, suas estratégias de contra-insurgência, às estruturas políticas, ideológicas, militares e de inteligência do imperialismo; às corporações econômicas que visam abrir os territórios, ocupá-los, e se apropriar de seus recursos culturais, naturais e estratégicos; as denominações religiosas, partidos políticos e mecanismos políticos destinados a penetrar, mediatizar e destruir os auto-governos e formas coletivas de decisão e organização. Daí, a sua precariedade e sua luta constante para sobreviver e se desenvolver, por estender os seus níveis de articulação intra-comunitária, municipal, regional e nacional, bem como ampliar os espaços de resistência, solidariedade e coordenação internacionais.

nuncamasunmexicosinnosotros21. O significado da autonomia em outros setores da sociedade

A partir das experiências autonômicas dos povos indígenas, Pablo González Casanova, em um importante texto intitulado Com os pobres da terra, apresentado a propósito do 25º aniversário do La Jornada (16 de setembro de 2009), reiterou a extensão do conceito de autonomia para outros sectores explorados e despossuídos da sociedade como uma forma de resposta para a ocupação capitalista dos nossos países. Da mesma forma, o grupo Paz com Democracia no seu Apelo à Nação, disse: “É necessária e inadiável a organização de comunidades autônomas em todo o país, comunidades cujos membros se auto-identifiquem e se autogovernem democraticamente para a produção-intercâmbio-defesa da sua alimentação, suas necessidades básicas, da sua educação e conscientização, com crianças, mulheres, idosos e homens para a defesa da vida, do patrimônio público, dos povos e da nação, para a preservação do meio ambiente e o fortalecimento dos espaços seculares e dos espaços para o diálogo, que nos unem em meio de diferenças ideológicas e valores compartilhados” (La Jornada, novembro de 2007). Em alguns países da América Latina, as autonomias tornaram-se uma via estratégica pela qual os sujeitos étnicos fazem valer sua identidade étnica, afirmam as suas diferenças e constroem formas de vida alternativas. A autonomia é uma estratégia de resistência e, neste sentido, é também uma estratégia de luta nacional e social. Se avançarmos na discussão do seu significado, das suas distintas naturezas, da sua utilidade política, estaremos contribuindo a gerar as condições da transformação crítica da realidade. Os princípios igualitários, participativos, auto-gestionários e coletivistas das autonomias indígenas tornaram-se uma das poucas abordagens estratégicas atuais para enfrentar com sucesso ao capitalismo, para preservar a espécie humana de sua auto-destruição e democratizar as nossas sociedades.

Notas

[1] Este texto é uma exposição elaborada para o Ciclo de Conferências “O pensamento crítico e as ciências sociais”. Celebrando 80 anos do Instituto de Investigações Sociais da UNAM 1930-2010, entre 4 e 14 de Maio de 2010.

[2] Refiro-me ao projeto com o acrônimo Latautonomy que foi desenvolvido entre 2001 e 2005 sob a coordenação do Instituto Ludwig Boltzmann para a América Latina, de Viena (Áustria), cuja hipótese central tinha como síntese: “Autonomias culturais na América Latina: uma condição necessária para o desenvolvimento sustentável”. Este projeto foi financiado e apadrinhado pela Direção-Geral de Ciências e Tecnologia da União Européia e levado a cabo em oito países: México, Nicarágua, Panamá, Bolívia, Equador, Brasil, Espanha e Rússia. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, Autonomías indígenas en América Latina: Nuevas formas de convivencia política, México: UAM-Plaza y Valdés, 2005. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, México: UAM- Plaza y Valdés, 2008.

[3] A este respeito a hipótese de Latautonomy afirma: “Hipótese de Territorialidade: Quanto maior é o controle de um sistema ou sujeito autonômico sobre um determinado território, menor é o perigo da destruição massiva dos recursos naturais e, por isso, maior é a sustentabilidade do sistema. Os fatores mais importantes que conduzem à apropriação do território pelo sujeito autonômico são: a) Conhecimentos específicos sobre a utilização dos recursos naturais (‘conhecimento local’); b) A coesão social na base de um bem comum culturalmente definido (‘capital local’); e c) A autonomia política nos processos de decisão. Relação investigada: Territorialidade-Autonomia. Fórmula Breve: Territorialidade = autonomia política + Cultura”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit.

[4] Latautonomy desenvolve assim a sua hipótese: “Hipótese da Interculturalidade: Quanto maior é o grau de multi ou interculturalidade, maior é a possibilidade de o sujeito autonômico se consolidar como força pluriétnica e de conseguir a autonomia político-jurídica pela via da negociação com o Estado nacional. O diálogo intercultural é ao mesmo tempo condição e consequência para um diálogo político, que deveria levar finalmente ao reconhecimento jurídico da autonomia por parte do Estado nacional. Relação Investigada: Interculturalidade-Política. Fórmula Breve: Interculturalidade = + Reconhecimento Jurídico”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit.

[5] Ver capítulo a respeito: “Antropologia e os povos indígenas no México” em Gilberto López y Rivas, Autonomías: democracia o contrainsurgencia, México: Editorial ERA, 2005. Pp. 13-28.

[6] A este respeito Latautonomy sustenta: “Hipótese da rede: A sustentabilidade de um sistema autonômico depende da sua capacidade para vincular o nível das comunidades locais com uma estrutura regional de forma horizontal e interativa. Através de um processo de integração a partir de baixo, devem ser criadas estruturas políticas econômicas participativas que se articulam, tanto no interior das autonomias multiculturais como para fora, gerando um projeto de sociedade alternativa. Esta hipótese pronuncia-se contra qualquer localismo etnocentrista e contra as representações hierárquicas que impedem o desenvolvimento de mecanismos participativos na tomada de decisões políticas. Relação Investigada: Política-Cultura (Democracia Participativa). Fórmula Breve: Rede de Comunidades Locais = Estrutura Regional”. Leo Gabriel y Gilberto López y Rivas, El universo autonómico: propuesta para una nueva democracia, Ob. cit..

[*] Gilberto López y Rivas é doutor em Antropologia, professor e pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e História - Centro Regional Morelos, em Cuernavaca (México).

Texto originalmente publicado (em castelhano) no site Rebelión, aqui. Tradução do Passa Palavra.