terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tocar o verde - a geografia e o calendário da destruição


Capítulo 3 Tocar o verde - a geografia e o calendário da destruição
Subcomandante Marcos

Não basta enterrar o capitalismo,
é preciso sepultá-lo virado de barriga pra baixo.
Para que, caso queira sair, se enterre mais ainda
Don Durito de A Laconda


Várias vezes têm se dito aqui que o poderio norte americano está liquidado, inclusive se tem adiantado as saudações pelo óbito do capitalismo como sistema mundial. Na seção de anúncios fúnebres e lugares na lista de espera para a funerária da história, tem se incluído: o socialismo, a economia política, o regime político no México e a capacidade militar do opressor mundial, nacional e local. Convidam-nos a deixar de nos preocuparmos com o que nos explora, despoja, reprime, deprecia. Exortam-nos a discutir e acordar com o que vem depois deste pesadelo.


Enfim, os letreiros de “ENCERRADO” e “EM PROCESSO DE DEMOLIÇÃO” têm se colocado nos edifícios que, permitam-nos a desconfiança cultivada com esmero ao longo de 515 anos, a nós, zapatistas, nos parecem, não só sólidos, mas em plenas funções e tranqüilos. A presunção pode ser má conselheira em questões práticas e teóricas. Foi ela quem alimentou aquilo de “não tiraram nenhuma pena do meu galo”, “as pesquisas me favorecem por 10 pontos”, “sorria, vamos ganhar”, “Oaxaca não será Atenco”.


Não será uma presunção parecida como essa que nos dará ânimo e nos fará sentar e ver o cadáver do inimigo passar. Mais adiante, em outra destas sessões, assinalaremos o tema guerra. Agora queremos nos focar mais detidamente em assinalar algumas destruições que vêm operando e que, diferente das mencionadas acima, podem ser constatadas “in situ” (Ora! Latim! Agora sim me vi muito acadêmico).


Mais que uma descrição ou uma relação em lista, queremos nos deter em um aspecto que é muito maior que essas outras destruições. Falo das destruições da natureza, seja via desflorestamento, contaminação, desequilíbrio ecológico, etc., assim como as malditas “catástrofes naturais”. E digo malditas[1], porque cada vez é mais evidente que a sangrenta mão do capital acompanha estas desgraças. Já em outras ocasiões temos assinalado que o capitalismo, como tendência dominante nas relações sociais, tudo converte em mercadoria; em sua produção, circulação e consumo, o lucro é o eixo articulador de sua lógica; e a vontade de lucro busca também a “aparição” de novas mercadorias, a criação ou apropriação de novos mercados.


Talvez nos rotulem de demasiado “ortodoxos” ou “clássicos” (algo de que, como tem sido evidente nestes 14 anos, seguramente se pode acusar o neozapatismo), se insistimos nisto de que ao capital interessam os lucros, por qualquer meio e de qualquer forma, todo o calendário e em toda a geografia. Os entendemos.


Mas pedimos a quem vem de cima que, pelo menos por um momento, deixem de lado suas leituras de “Vuelta”, “Letras Libres”, “Nexos”, “TV y Notas” e as conferências magistrais de Al Gore; deixe descansar uns minutos seus fantasmas do Gulag e do Muro de Berlim; apaguem um momento as velas acendidas ao candidato “menos mal”; coloquem em “stand by” suas análises que não sabem diferenciar uma mobilização de um movimento; e aceitem que, talvez, seja provável, seja um supositório[2], pode ser que, por efeito, o capital pretenda converter tudo em mercadoria e esta no lucro.


Revisem agora, detalhadamente, cada uma das distintas destruições que o planeta padece e concluirão como aparece o capital usufruindo destas. Primeiro nas causas da desgraça, e depois em suas conseqüências.


Tabasco e Chiapas. As geografias e os calendário da destruição

Há várias semanas que o Rio Grijalva e o Rio Carrizales transbordaram, colocando setenta por cento do território do sudeste do estado mexicano de Tabasco debaixo de água, parece que se abriu aí uma nova etapa: a da reconstrução e das justificativas inaceitáveis. O saldo é arrepiante: um milhão de afetados e, ao menos, oitenta mil residências destruídas, além do perigo latente de um novo transbordamento.


No governo do panista[3] Felipe Calderón evitou-se uma discussão séria sobre o que motivou a inundação – através do argumento de “não politizar a situação”. Em 8 de novembro passado, o secretário de Governo declarou que: “a emergência é a emergência e tem que ser resolvida, não encontrar culpados”.


Claro que não se pode encontrar culpados se não se faz uma avaliação séria do acontecido. A realidade é que, conforme a população se sente mais segura no que concerne a sua integridade física, a discussão sobre o que passou é o tema central das conversas, não podemos dizer que são conversas de bar] porque não há bares, somente nos refúgios, nas ruas e nos campos.


Da mesma forma, nas esferas das diversas correntes políticas do país o tema começa a se manifestar, nem sempre de maneira desinteressada. Deste então, é um absurdo pedir que não se politize o que sucedeu, quando por trás de tudo existe uma série de políticas públicas que têm permitido, em paralelo às causas naturais, a situação que hoje se vive em Tabasco.


Felipe Calderón, ao grito de “vi o documentário de Al Gore”, esconde-se em uma explicação muito na moda em nossos dias: a mudança climática: “não nos equivoquemos, a origem da catástrofe está na enorme alteração climática”.


Assim não é necessário buscar ou localizar uma responsabilidade concreta. Parece que, para o autodenominado presidente, a mudança climática é uma tragédia quase divina, não tem nada a ver com o modelo de desenvolvimento aplicado e que se continua aplicando. É muito provável que esta inundação tenha ligação com essa mudança climática, o que seria importante elucidar são as razões disso.


Cecília Vargas, jornalista de A Verdade do Sudeste, nos disse: “uma das causas da inundação é a venda de terras e a construção de casas e lojas comerciais nas zonas pantanosas, que são terraplanadas, tapando assim os lençóis reguladores da cidade e impedindo a circulação e absorção de água. Em zonas aterradas (ou aterros) se constróem centros comerciais como Wal Mart, Sam’s, Chedrahui, Fábricas de Francia, Cinépolis (construídos durante os governos de Roberto Madrazo e Manuel Andrade)”.


Ou, como assinala os habitantes indígenas da zona rural: “dizem os nossos vozinhos que antes chovia mais ou igual, mas não havia inundação, por que agora inunda? Dizem que é por causa das novas construções que tapam os caminhos da água”.


Posteriormente, o senhor Calderón responsabilizou, no cúmulo da estupidez, a lua pelas tremendas marés que provocou.


No entanto, Maria Esther, habitante da cidade de Villahermosa e companheira da Outra Campanha, utiliza o senso comum – tão alheio aos “espertos” –, e assinala um sucesso estranho: “a Laguna de las Ilusiones, que se encontra em plena Villahermosa, nunca transbordou, e subiu apenas no seu nível, a diferença de outros anos. Se a origem fundamental da catástrofe tivesse sido as chuvas, essa lagoa teria transbordado e isso não ocorreu”.


E concordam a jornalista Cecília Vargas e María Esther: “as inundações foram um crime, porque houve a abertura das comportas da represa Peñitas quando já não dava mais, e foi esta água que inundou Villahermosa”. Adiante, citam um documento do Comitê Nacional de Energia, de 30 de outubro, onde se assinala que “a represa Peñitas está à beira do colapso porque só usa a água para geração de eletricidade nas noites, enquanto a base da geração elétrica é por meio de gás enviado pelas indústrias privadas”. Por trás disto está a Repsol, a multinacional espanhola que “aonde pisa não volta a crescer ervas”. No documento, como sempre, é advertido que “é necessário abrir as comportas, porque os limites da represa estão no máximo” e exigido da Secretaria de Energia a geração permanente de energia por meio das hidroelétricas.


O fato concreto é que andando em Villahermosa constata-se que a zona hoteleira, a colônia Tabasco 2000 e outras zonas “ricas” da cidade não foram afetadas, graças às obras que, em anos passados, aí fizeram para prevenir inundações (a borda de contenção do Rio Carrizal). Em meio às catástrofes se mede a estatura dos políticos... e dos analistas. Esta ocasião não tem sido exceção. No meio da tragédia querem que os três principais partidos do México compartilhem a responsabilidade do que ocorreu.


Tanto a presidência da república nas mãos do direitista PAN, como o governo do estado nas mãos de um militante do corrupto Partido Revolucionário Institucional, como as prefeituras municipais, majoritariamente nas mãos do supostamente esquerdista Partido da Revolução Democrática, têm evidenciado seu profundo desapego da sociedade.


O exemplo mais claro desta situação se viu em 31 de outubro, quando o autodenominado presidente do México, Felipe Calderón, chegou a Tabasco para fazer uma visita para avaliar a situação. Vendo que havia pessoas que estavam colocando sacos com areia nas bordas do rio para criar um dique, decidiu ajudar e durante 15 minutos se pôs a trabalhar, junto com sua esposa e alguns membros de seu gabinete. Esse tipo de atitude, tão próxima do que era a forma de governar do PRI, teria forte impacto social e midiático, mas somente provocou indignação e raiva.


Pior foi que ao ver que havia muita gente apenas olhando e perante os “soluços”, do governador, Felipe Calderón ganhou coragem e ameaçou aos que somente olhavam: “Coloquem-se a ajudar ou mando por vocês!”, e imediatamente ordenou aos militares que estavam lá para ajudar os trabalhadores a encher os sacos de areia. As pessoas se alteraram, e o olhar adquiriu um sentido de depreciação, os soldados tampouco se moveram, entendendo que aquela ordem era atear gasolina ao fogo; a conseqüência disto foi que o presidente se retirou do lugar e deu por terminado seu trabalho de reconstrução. Seus quinze minutos de trabalho não se converteram em quinze minutos de glória. Mas pelo contrário, de vergonha. Um dos que estavam olhando comentou depois, levantando a voz sem nenhum temor: “é fácil vir aqui 15 minutos e tirar uma foto, para que os grandes noticiários de televisão gravem. Tomar um banho de povo e logo ir para sua casa, jantar e dormir comodamente com sua família”.


Há várias semanas do início da tragédia de Tabasco, o que chama atenção dos habitantes desse lugar é a grande solidariedade que sua situação tem despertado entre o povo do México. A maior parte dos alimentos, bebidas e medicamentos que lhes têm chegado são recolhidos entre a sociedade civil mexicana.


Enquanto os carregamentos com ajuda provenientes de diferentes governos, seja o federal, os estaduais ou os municipais, são invariavelmente etiquetadas com os logotipos que identificam partidos políticos, a ajuda cidadã tem como característica o anonimato. Em nada semelhante com as desavenças entre o governo federal e o distrito federal, nem Felipe Calderón e Marcelo Ebrard se importam com a situação dos atingidos, a única coisa que lhes interessa é tirar fotos: um enchendo sacos de areia com a habilidade de um advogado egresso de uma universidade privada, e o outro dando bandeirada de saída, com cara de bobo, rodeado de fotógrafos e jornalistas.


Mas, houve outra ajuda presente desde os primeiros dias nas comunidades mais pobres de Tabasco, as que fazem fronteira com o estado de Chiapas: a ajuda que se fez de povoado pobre a povoado pobre. Nos narra um habitante desta região: “Houve um interesse por parte dos companheiros zapatistas de saber como estávamos, em que condições estava cada um. Nos disseram que se necessitássemos sair poderíamos contar com os municípios autônomos zapatistas como albergues seguros.

Eram dias difíceis; não havia comunicação, cortaram as linhas de telefone, as estradas, e a água potável. Inclusive em muitos lados não havia luz, escasseavam os alimentos e a água para consumo, mas em meio a tudo isso, tínhamos a certeza de saber que contávamos com teto e comida segura nos municípios autônomos.


Não foi fácil a comunicação entre nós, mais ou menos sabíamos onde havia inundado pela localização de cada um, sabíamos que estavam com vida, ainda que padecendo das dificuldades deste desastre.


Então, as respostas foram ao estilo zapatista: rápidas, efetivas e seguras. Os companheiros das bases de apoio convocaram em Tila, Chiapas, e nos municípios autônomos a solidariedade conosco. Pode-se dizer que os três caminhões de carregamentos que vieram de Tila, no dia 3 de novembro, foram uma das primeiras ajudas que o estado recebeu, quando não tínhamos comunicação telefônica e nem passagem nas estradas salvo para veículos pesados.


Sabíamos que, junto com a ajuda da sociedade civil e da paróquia de Tila, vinha o apoio das bases zapatistas da zona norte. Sabíamos que os companheiros trabalharam dia e noite para promover a provisão. E a ajuda foi não só oportuna, mas maravilhosa. Quando não havia como cozinhar nas casas, só em alguns albergues, chegaram três caminhões cheios de pozol (bebida típica dos indígenas tanto de Chiapas como de Tabasco), torradas, e todos nossos alimentos tradicionais ao contrário dos governos que nos davam horríveis sopas instantâneas. Efetivamente foram os primeiros a chegar e todo mundo se admirava e agradecia este apoio tão oportuno e além disso tão de baixo, tão conhecedor de nossos alimentos, o pozolito, a tortilha. Logo, dois dias depois, outros três caminhões e assim várias viagens”.


E logo cheio de emoção o habitante narra: “A região de Tacotalpa estava sem comunicação, não entravam nem caminhões pesados. Os companheiros das bases de apoio zapatista nos disseram que não ficássemos tristes, pois ia chegar apoio especial para eles e foi assim que, em meio da serrania de Tacotalpa, ante o olhar assombrado dos povoados vizinhos, se viu desceu da montanha uma fila larga de mais de 50 homens, 30 mulheres e muitas crianças, mera base de apoio zapatistas, que em dois dias desceram, carregando em seus ombros por várias horas, sacos com milho, feijão, torradas, pozol, pinol, açúcar, laranjas, tangerinas, limões, abóbora, iúca, maçal e água engarrafada ou fervida dos riachos da montanha, para os companheiros e companheiras tasbaqueñas... Isto através do Município Autônomo El Campesino, mas sabemos que houve apoio de outros municípios que de bom coração deram o que tinham e como sempre o que tinham era muito grande, muito valioso, capaz romper qualquer dificuldade por maior que pareça.


Para os que presenciaram, foi algo maravilhoso ver homens, crianças, mulheres, anciãos da cor da terra trazer o sustento que necessitamos aos companheiros de cá deste lado da zona de baixo. Depois chegaram outras camionetes com ajudas similares. Mas não só vinham nos dar ajuda, também vinham escutar nossa dor, que dissemos o que estava passando, como estávamos, o que realmente provocou tudo isto, como é que vamos abaixo após o desastre. Eles provaram a nossa dor, para começar a curá-la.


Não há palavras com as quais possamos agradecer a todos e a cada um dos companheiros da base de apoio zapatista, que com bom coração e com verdadeiro humanismo compartilharam seu pão, sua água e sua luta para construir um mundo onde caibam muito mundos.


Desde logo, nada dispo apareceu nos grandes meio de comunicação mexicanos. Além das pistas de patinação, o que insistentemente se diz nestes meios é que toda classe política se acusa entre si por lucrar com a tragédia. Assim, por exemplo, o ministro do Trabalho se confrontou com o Chefe de Governo da Cidade do México, o primeiro chamou de ruim o segundo, e este o respondeu chamando-lhe de tonto. O interessante é que ambos tinham razão.


Aqui vocês observam uma diferença fundamental e irreconciliável entre o que nós buscamos, no movimento que se chama A Outra Campanha, e os que se aglutinam em torno ao lopezobradorismo[4].


Eles querem um mundo com pistas de gelo para patinação, praias artificiais, segundos pisos, e o glamour do primeiro mundo. Nós queremos um mundo como esse que desce da montanha zapatista para ajudar o necessitado, um outro mundo.


Algo de Geografia e Calendário básicos

Existe no Caribe, estendida ao sol como um verde jacaré, uma alargada ilha. “Cuba” é como se chama o território, “Cubano” é como se chama o povo que aí vive e luta. Sua história, como a de todos os povos da América, é uma longa trança de dor e dignidade. Mas há algo que faz esse solo brilhar. Se diz, não sem verdade, que é o primeiro território livre da América.


Durante quase meio século, esse povo tem sustentado um desafio descomunal: construir um destino próprio como Nação. “Socialismo” tem chamado este povo o seu caminho e motor. Existe, é real, se pode medir em estatísticas, pontos percentuais, índices de vida, acesso à saúde, à educação, à moradia, à alimentação, desenvolvimento científico e tecnológico. Quer dizer, que se pode ver, ouvir, olhar, degustar, tocar, pensar e sentir.


Sua impertinente rebeldia lhe tem custado o bloqueio econômico, as invasões militares, as sabotagens industriais e climáticas, as tentativas de assassinatos contra seus líderes, as calúnias, as mentiras e a mais gigantesca campanha midiática de desprestígio. Todos estes ataques provêm de um centro: o poder norteamericano.


A resistência deste povo, o cubano, não só exige conhecimento e análise, mas também respeito e apoio. Agora que tanto se fala em defuntos, é bom recordar que há 40 anos tentam enterrar Che Guevara; que Fidel Castro já foi declarado morto várias vezes; e que a Revolução Cubana já teve inutilmente marcada várias datas de extinção. Dezenas de calendários de extinção; que nas geografias onde se traçam as estratégias atuais do capitalismo selvagem, Cuba não aparece, por mais que se empenhem.


Com a ajuda efetiva, com o sinal de reconhecimento, de respeito e de admiração, as comunidades indígenas zapatistas têm enviado um pouco de milho não transgênico e um pouco de gasolina. Para nós, têm sido nossa forma de fazer este povo saber que entendemos as mais pesadas das suas dificuldades que padecem e que têm como centro emissor: o governo dos Estados Unidos da América.


Como zapatistas pensamos que devemos estender o olhar, o ouvido e o coração a este povo. Não vai ser, como nós, que se dirá que o movimento é muito importante e essencial, e blá, blá, blá; e quando, como agora, somos agredidos, não há nenhuma linha, nenhum pronunciamento, nenhum um sinal de protesto.


Cuba é algo mais que o estendido e verde jacaré do Caribe. É um referencial, cuja experiência será vital para os povos que lutam, sobretudo, nos tempos de obscurantismo que agora se vive e se alargaram já há algum tempo. Ao contrário dos calendários e geografias da destruição, em Cuba há um calendário e uma geografia da esperança.


Por isto agora dizemos, sem afetação, não como ordem, mas com sentimento: Que viva Cuba!


Muito agradecido. Subcomandante Insurgente Marcos. San Cristóbal de Lãs Casas, Chiapas, México. Dezembro de 2007.

Sombra, o levantador de Luas.
Obs.: Que confirma que a Lua é rancorosa e conta a lenda da origem de Sombra, o guerreiro:

Conto a vocês como me contaram. Faz muito tempo, não há calendário que o localize. O lugar em que ocorreu não tem geografia que assinale. Sombra, o guerreiro, todavia não era guerreiro nem era ainda Sombra. Cavalgava a montanha quando lhe deram notícia. “Onde?” perguntou.


“Ali, onde é a fenda da montanha” - foi a vaga referência que lhe deram.

Sombra cavalgou, contudo ainda não era Sombra. A notícia percorria as canhadas de extremo a extremo:

“A Lua caiu, assim do nada. Como que desmaiou e veio a cair. Devagarzinho veio, como se não quisesse, como não a olhassem, como não dessem conta. Mas bem que a olhamos. Como que parou sobre a colina e logo foi rodando até o fundo do barranco. Claro que vimos. Era luz, pois. Era a Lua.”

Chegou Sombra à borda do barranco, se apeou do cavalo. Devagar desceu ao fundo e encontrou à Lua. Com o laço rodeou. Sobre suas costas a carregou. Subiram Lua e Sombra montanha acima. Sombra sobre o caminho, Lua sobre Sombra. Chegaram até a ponta mais alta da colina, para lançá-la daí de novo ao céu. Para que de novo andasse a Lua novamente nos caminhos da noite. Não quero, disse Lua. Aqui quero ficar, contigo. Tíbia será minha luz para ti, na noite fria. Fresca no ardente dia. Tu me trará espelhos que multipliquem meu brilho.

Contigo ficarei, aqui. Sombra disse não, o mundo, seus homens e mulheres, suas plantas e animais, seus rios e montanhas, da Lua necessitam para melhor ver seus passos na obscuridade, para não perder-se, para não duvidar quem são, de onde vêm, e aonde vão.

Discutiram. Tardaram ali. Os murmúrios eram luzes morenas, sombras luminosas. Muitas outras coisas disseram. Tardaram. De madrugada se ergueu Sombra e com a correia lançou A Lua de novo ao céu. A Lua enojada ia, incomodada. No alto, no lugar que os primeiros deuses lhe deram, ficou a Lua. Desde aí a Lua maldisse a Sombra. Assim disse:

“De agora em diante Sombra serás. Luzes verás, mas não serás. Sombra caminharás. Guerreiro serás. Não haverá para ti rosto, nem casa, nem repouso. Só caminho e luta terá. Vencerás. Encontrará, sim, a quem amar. Teu coração falará em tua boca quando ‘te quero’ dizer. Mas Sombra seguirás e nunca encontrarás quem te ame. Buscarás, sim, mas não encontrarás os lábios que sabem dizer ‘tu’. Assim serás, Sombra, o guerreiro, até que já não sejas”.

Desde então, Sombra é quem agora é: Sombra, o guerreiro.

A saber quando e onde foi e será.

Todavia falta fazer esse calendário, todavia falta inventar essa geografia.

Todavia falta aprender a dizer “Tu”.

Todavia falta o que falta...


Até amanhã.

Participação do Colóquio Internacional In Memorian Andrés Aubry no dia 14 de dezembro

Referências

  1. Mal llamadas no original.
  2. Um trocadilho com a palavra suposição
  3. Partidário do PAN, Partido da Ação Nacional, o mesmo que elegeu Vicente Fox (2000) e Felipe Calderón Hinojosa (2006). (Nota do Tradutor)
  4. Referente ao político mexicano Andrés Manuel López Obrador derrotado nas eleições presidências de 2006 por meio ponto percentual, a qual acusa de terem sido fraudulentas.



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