"A LIBERDADE SEMPRE IMPLICA NO DIREITO DE MATAR. ONDE O ASSASSINATO FOR PROIBIDO, SIGNIFICA QUE TODOS SE TORNARAM ESCRAVOS. O MAIOR DESEJO DO HOMEM É DERRAMAR SANGUE E, AO MESMO TEMPO, SENTIR-SE VIRTUOSO."
"(...) Eu sustento que é necessário haver neste mundo infelizes, que a natureza assim o exige e que é contra as suas leis pretender estabelecer neste campo qualquer equilíbrio, quando o que ela quer é a desordem.
- Mas então, Duclos - disse Durcet -, tu tens princípios! Muito me agradava ver-te assim; todo o alívio que se queira dar ao infortúnio é crime real contra a ordem da natureza. A desigualdade que ela impôs aos indivíduos prova que semelhante discordância é do seu agrado, pois a estabeleceu e a deseja quer nas fortunas quer nos corpos. E como ao fraco é permitido compensá-la mediante o furto, igualmente é permitido ao forte mantê-la mediante a recusa de auxílio. O universo deixaria de subsistir imediatamente se todos os seres fossem exactamente semelhantes; é da dissemelhança que nasce a ordem que tudo mantém e governa. Importa portanto ter cautela e não a perturbar; senão, julgando estar a fazer o bem a essa classe de homens infelizes, estou a fazer muito mal a outro, pois o infortúnio é o alfobre onde o rico vai colher os objectos da sua luxúria ou da sua crueldade; privo-o dessa espécie de prazer se, com os meus auxílios, impedir essa classe de a ele se entregar. Com as minhas esmolas, portanto, eu favoreci parcamente uma pequena parte da raça humana e prejudiquei prodigiosamente a outra parte. Vejo, portanto, a esmola não só como uma coisa má em si mesma, mas considero-a além disso como crime real contra a natureza que, impondo-nos diferenças, de modo nenhum tolera que a perturbemos. Assim, longe de ajudar o pobre, de consolar a viúva, de aliviar o órfão, se procedo de acordo com as verdadeiras intenções da natureza, antes os deixarei no estado em que a dita natureza os colocou, e, mais ainda, ajudarei esta nos seus desígnios, agravando esse estado e opondo-me violentamente a quaisquer mudanças, para tanto lançando mão de todos os meios permitidos.
- Como? - disse o duque. - Matando-os e arruinando-os também?
- Certamente - disse o financeiro - e até aumentando o seu número, já que a sua classe está ao serviço de uma outra e, multiplicando-os, faço ao mesmo tempo mal a uma classe e muito bem à outra.
- Que sistema tão duro, meus amigos - disse Curval. - Todavia diz-se que sabe bem fazer o bem aos infelizes!
- Abusivamente - respondeu Durcet - esse prazer nada tem a ver com o outro; um é quimérico, o outro é real; um está dependente de preconceitos, o outro funda-se na razão; um, mercê do órgão do orgulho, a mais falsa de todas as sensações, pode por momentos afagar-nos o coração, ao passo que o outro é um autêntico prazer espiritual que inflama todas as paixões pela razão de contrariar as opiniões comuns. Numa palavra, um dá-me tesão - terminou Durcet -, com o outro pouca coisa sinto.
- Mas será que devemos referir tudo aos nossos sentidos? - perguntou o bispo.
- Tudo, meu amigo - disse Durcet -, são eles que devem guiar-nos em todas as acções da nossa vida, pois só o seu órgão é realmente imperioso.
- Mas desse sistema podem derivar milhares e milhares de crimes - afirmou o bispo.
- Que se dá a mim do crime - disse Durcet - contanto que eu me deleite; o crime é um dos modos da natureza, uma das maneiras de ela mover o homem. Porque é que não haveis de deixar que ela me leve para outros rumos que não a rota da virtude? Ela tem necessidade de uma coisa e de outra, e sirvo-a da mesma forma seguindo um caminho ou outro. (...)"1
Marquês de Sade (1740-1814)
1SADE, Marquês de - Os Cento e Vinte Dias de Sodoma. 1ª edição. Lisboa: Antígona, 2000. ISBN 972-608-115-7. pg 288-290
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"(...) Eu sustento que é necessário haver neste mundo infelizes, que a natureza assim o exige e que é contra as suas leis pretender estabelecer neste campo qualquer equilíbrio, quando o que ela quer é a desordem.
- Mas então, Duclos - disse Durcet -, tu tens princípios! Muito me agradava ver-te assim; todo o alívio que se queira dar ao infortúnio é crime real contra a ordem da natureza. A desigualdade que ela impôs aos indivíduos prova que semelhante discordância é do seu agrado, pois a estabeleceu e a deseja quer nas fortunas quer nos corpos. E como ao fraco é permitido compensá-la mediante o furto, igualmente é permitido ao forte mantê-la mediante a recusa de auxílio. O universo deixaria de subsistir imediatamente se todos os seres fossem exactamente semelhantes; é da dissemelhança que nasce a ordem que tudo mantém e governa. Importa portanto ter cautela e não a perturbar; senão, julgando estar a fazer o bem a essa classe de homens infelizes, estou a fazer muito mal a outro, pois o infortúnio é o alfobre onde o rico vai colher os objectos da sua luxúria ou da sua crueldade; privo-o dessa espécie de prazer se, com os meus auxílios, impedir essa classe de a ele se entregar. Com as minhas esmolas, portanto, eu favoreci parcamente uma pequena parte da raça humana e prejudiquei prodigiosamente a outra parte. Vejo, portanto, a esmola não só como uma coisa má em si mesma, mas considero-a além disso como crime real contra a natureza que, impondo-nos diferenças, de modo nenhum tolera que a perturbemos. Assim, longe de ajudar o pobre, de consolar a viúva, de aliviar o órfão, se procedo de acordo com as verdadeiras intenções da natureza, antes os deixarei no estado em que a dita natureza os colocou, e, mais ainda, ajudarei esta nos seus desígnios, agravando esse estado e opondo-me violentamente a quaisquer mudanças, para tanto lançando mão de todos os meios permitidos.
- Como? - disse o duque. - Matando-os e arruinando-os também?
- Certamente - disse o financeiro - e até aumentando o seu número, já que a sua classe está ao serviço de uma outra e, multiplicando-os, faço ao mesmo tempo mal a uma classe e muito bem à outra.
- Que sistema tão duro, meus amigos - disse Curval. - Todavia diz-se que sabe bem fazer o bem aos infelizes!
- Abusivamente - respondeu Durcet - esse prazer nada tem a ver com o outro; um é quimérico, o outro é real; um está dependente de preconceitos, o outro funda-se na razão; um, mercê do órgão do orgulho, a mais falsa de todas as sensações, pode por momentos afagar-nos o coração, ao passo que o outro é um autêntico prazer espiritual que inflama todas as paixões pela razão de contrariar as opiniões comuns. Numa palavra, um dá-me tesão - terminou Durcet -, com o outro pouca coisa sinto.
- Mas será que devemos referir tudo aos nossos sentidos? - perguntou o bispo.
- Tudo, meu amigo - disse Durcet -, são eles que devem guiar-nos em todas as acções da nossa vida, pois só o seu órgão é realmente imperioso.
- Mas desse sistema podem derivar milhares e milhares de crimes - afirmou o bispo.
- Que se dá a mim do crime - disse Durcet - contanto que eu me deleite; o crime é um dos modos da natureza, uma das maneiras de ela mover o homem. Porque é que não haveis de deixar que ela me leve para outros rumos que não a rota da virtude? Ela tem necessidade de uma coisa e de outra, e sirvo-a da mesma forma seguindo um caminho ou outro. (...)"1
Marquês de Sade (1740-1814)
1SADE, Marquês de - Os Cento e Vinte Dias de Sodoma. 1ª edição. Lisboa: Antígona, 2000. ISBN 972-608-115-7. pg 288-290
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